Do original italiano:
Camilla Battista da Varano
AUTOBIOGRAFIA
Editrice Àncora, Milano 1983
Tradução: Ir. Maria Renata do Bom Pastor, osc
Revisão : Ir. Sandra Maria da Imaculada Conceição, osc
Mosteiro Nazaré - Lages - 1995
Aos 33 anos não se escreve um pequeno livro como este se não se tornou um espelho daquilo que se escreve. Nesta obra, Camila Varani é como um mês de março, na sua terra marquesiana ao menos: vento, botões, nuvens tempestuosas e alegres, luminosas claridades, neves se desfazendo e por todo o lugar o novo verde do grão.
Quem ergue os olhos sobre a região desta autobiografia espiritual fica quase surpreendido pela violenta ternura desta primavera que lhe acontece ao redor.
Porém, o leitor é ainda um espectador que permanece sobre a soleira da luz: além está Deus, assentado em meio à página de Camila. Ela nos fala dele, de sua presença, compreendeu-O, encontrou-O, falou com Ele, dentro dos aposentos do próprio espírito. Uma liberdade soberana envolve a história entre os dois, uma experiência esponsal tempestuosa, sempre magnífica.
Os santos são livres com Deus, todos; mas esta irmãzinha seria talvez até mesmo impertinente, se não fosse uma amante. Tal dueto de bofetões e de beijos o encontramos somente nos salmos e no profeta Jeremias (que ela cita lamentosamente ao ritmo dos capítulos), e raramente em toda a literatura da mística, não excetuada a audacissíma Teresa d’Avila, à qual Camila não cede em nenhum ponto da sua aventura espiritual e teológica.
Entretanto, Camila escrevia no insípido dialeto camerinense de 1400, enquanto Teresa no áureo castelhano de 1500. Isto não tolhe, com efeito, à nossa narradora um aspecto estilístico personalíssimo, ainda se duro, talvez contorcido. Mas aqui e lá cantante, gracioso, sereno. Este fato, todavia, comprometeu o destino literário de sua obra e também limitou a presença doutrinal de sua espiritualidade.
Conhecida pelos doutores, Camila permaneceu escondida para a grande parte do povo cristão. Não causará escândalo, portanto, se a presente edição de sua "vida espiritual" ou autobiografia, sair na veste contaminada da língua corrente, na tentativa de atingir também o leitor contemporâneo. É um ato de caridade. Perdoem-no os eruditos! No convite do Reino dos céus devem entrar também os mancos da literatura, diz o Evangelho.
Jesus, Maria.
Meu diletíssimo Pai, durante todo este mês de fevereiro estive em uma grande agonia e batalha mental; por causa de uma veemente, calorosa, fervente inspiração. Eu coloquei grande resistência, pensando que fosse tentação diabólica e, na dúvida que o espírito de orgulho e de soberba quisesse enganar-me, permitindo-o Deus por meus pecados e iniquidades.
Por isso estava desolada e privada de toda ajuda e conselho humano; recorri a minha única arma, isto é, à santa oração.
Pedi a Deus e a sua dulcíssima Mãe, com todo o coração e afeto possíveis a mim, que me iluminassem nas densas trevas nas quais me encontrava por causa dos meus pecados, a fim de que pudesse conhecer a sua vontade: escrever ou não.
Verdadeiramente, meu Pai, posso dizer em consciência que em todos esses meses estive quase fora de mim de tanto invocar Deus , para que me ajudasse em tanta angústia. Para encontrar paz, dormindo, velando, orando e dizendo o Divino Ofício; hoje, segundo domingo da quaresma, penúltimo dia de fevereiro, após ter recebido a Santa Comunhão, decidi-me a seguir tal inspiração. De outro modo, não encontro repouso. Espero com a graça de Deus ter escolhido aquilo que é a sua vontade.
De quanto narrarei não posso alcançar outra coisa que confusão e vergonha. Isto me faz solícita a obedecer mais do que qualquer outra consideração, se bem que a ela são unidas muitas outras, úteis e necessárias.
Ó meu Pai[1], a inspiração que tive é esta: pela saúde de minha alma e para que tu possas melhor compreender aquilo que direi e a gravidade daquilo que te disse, é necessário que te narre e explique aquilo que nunca dis se nem expliquei a ninguém; isto é, a minha vida espiritual, como começou e como continuou até hoje[2].
Assim desejo fazer, se bem que seja para mim um sofrimento amaríssimo, como o sabe Deus.
Até então balbuciei, meu Pai, quando, seja por carta, seja a viva voz, dei-te qualquer noção daquela dor que me despedaça o coração. Agora chegou o momento que te abra toda a minha alma e te mostre abertamente aquela chaga escondida que há quase três anos está me consumando. Este foi e é aquele pungente punhal que me traspassou o coração; esta foi e é aquela lança potentíssima "do soldado Jesus que penetrou o íntimo do meu coração".
Meu diletíssimo Pai, não te desagrades e não te enjoes de escutar-me, pois, como uma outra Madalena aos pés do bom Jesus, assim prostrada aos teus pés, toda regada de pudor e de vergonha, te relatarei chorando a história de minha infelicíssima felicidade.
Parece-me poder chamá-la com toda a sinceridade: "infelicíssima felicidade" porque por meus pecados, infidelidade e ingratidão, a minha felicidade , mudou-se em tanto fel, veneno e amargura.
Mas, dileto e caro Pai, calorosamente te peço de querer considerar e ver com benévola, paterna compreensão "se há uma dor como a minha dor".
Agora devo falar, Pai, de um argumento tão alto, isto é, de Deus e das coisas por Ele operadas secretamente na minha alma, somente por sua "bondade e graça".
Parece-me que um tremor me aperta o coração. Com grande temor narro e escrevo; eu não sou outra coisa que falsidade e mentira, por isso invoco o Espírito de Cristo bendito, que se digne assistir-me nesta minha narração. Sei que somente Ele é Espírito verdadeiro e simplicíssimo e "ama a verdade e a pureza". Ele me dê a graça de poder contar-te com simplicidade as graças e os dons recebidos indignamente de Deus, Pai das misericórdias. Assim quero fazer; desejo dizer menos, antes que dizer demais.
Estas coisas tenho a intenção de manifestar-te sob sigilo de confissão, por isso digo: "confesso-me a Deus, Pai onipotente, e a ti, Pai".
Sabe, meu doce Pai, que toda a minha vida espiritual teve origem, princípio e fundamento de ti, não de outro. Estou certa que isto te maravilhará e talvez te parecerá de todo inacreditável, porque tu não sabes nada disso, nem eu jamais pensei de dever referi-lo a ti ou a outros.
Meu Pai, quando tu pregaste pela última vez em Camerino, eu não poderia ter mais que oito ou dez anos(podes fazer as contas se te lembras quando aí pregaste). Eu completarei os anos de Nosso Senhor Jesus Cristo - trinta e três - em nove de abril, porque nasci em 1458. Tire de trinta e três os anos transcorridos desde quando pregaste em Camerino e saberás a minha idade de então.
Naquela sexta-feira santa quis ir "espontaneamente" à tua pregação, santa e bendita para mim, à qual assisti. Por graça do Espírito Santo, não somente atenta, mas toda arrebatada e quase fora de mim. Era como pessoa que ouve narrar coisas nunca antes ouvidas por alguém.
Parecia-me que tais coisas não pertencessem ao passado, mas se cumprissem naquele momento. Podes fazer uma idéia, diletíssimo Pai, de quantos anos tinha e como era ingênua e simples. Quando, de fato, tu disseste que Jesus foi conduzido diante de Herodes e que este o haveria libertado se tivesse falado, fui tomada por tanta compaixão que pedia a Deus de dar-me a graça de que este Jesus falasse e respondesse, se não quisesse ser morto. Mas quando ouvi que não havia querido falar, experimentei grande dor e dizia no meu coração para tirar aquela aguda pena que sentia: "Pior para ele. Porque não respondeu? Mas então quer mesmo morrer. "
Assim era, meu benigno senhor, mas eu não o compreendia.
Narro isto, meu Pai, para que tu conheças qual a idade que pudesse ter quando este doce Deus começou a querer tomar posse desta minha ingrata alma.
Ao fim da pregação tu fizeste uma calorosa exortação para induzir as almas ao pranto e à meditação da Paixão de Cristo. Exortaste-as a recordar-se, ao menos na sexta-feira, de sua Paixão e a derramar por ela uma lagrimazinha só. Afirmaste, meu doce Pai, que seria mais aceito por Deus e mais útil à alma aquela única lagrimazinha que qualquer outra obra santa.
Esta palavra, saída de tua boca por virtude do Espírito Santo, ficou gravada tão profundamente no meu terno coração de menina que nunca mais a esqueci.
Já maiorzinha, recordando a tua santa palavra, fiz voto a Deus de derramar cada sexta-feira ao menos uma lágrima por amor a Paixão de Cristo. Daqui teve início toda a minha vida espiritual, como te narrarei.
Não te maravilhes se te disse que de ti teve origem e princípio a minha vida espiritual, mas louva a Deus comigo e agradeçamos juntos ao nosso criador do qual deriva esta e todas as coisas boas.
Mas voltemos ao nosso assunto: feito aquele voto, esforcei-me o quanto podia para observá-lo, embora cada sexta feira era custoso para derramar aquela lágrima.
Enjoava-me ler coisas devotas, nem podia suportar ouvi-las. Por esta razão me era muito difícil espremer aquela bendita lágrima. Mas quando, com a ajuda de Deus, caía uma dos meus olhos, não creia, meu Pai, que eu esperasse a segunda, tanto era ligeira em erguer-me e ir embora. Às vezes, por minha vivacidade e muito brincar e rir durante todo o sarau, não havia meio de a poder derramar. Então permanecia descontente por toda a semana, e me parecia que por isso iria me acontecer alguma desgraça.
Durante a quaresma, fui confessar-me com Frei Pacífico de Urbino[3]. Após a confissão me perguntou se havia feito algum voto. Respondi que não. Mas após haver refletido, recordei-me e disse que havia feito sim um voto, mas que às vezes não conseguia manter a promessa, ainda que sempre tivesse a vontade de cumpri-la.
O confessor me perguntou de que voto se tratava, mas eu não o queria dizer. Envergonhava-me de manifestar uma coisa boa.
Todavia, após alguma resistência, o manifestei. E ele: "Minha filha, não quero absolutamente te desobrigar. Antes, quero que o observes. Porém, no caso de , após haver feito todo o esforço para mantê-lo, não haveres mesmo assim tido êxito, não deves pensar de ter pecado. "
Meu Pai, após haver perseverado por muito tempo neste voto com muita fadiga, agradou a Deus que me caísse nas mãos uma meditação da Paixão de Cristo, dividida em quinze partes. Parecia ter sido escrita de propósito para uma pessoa que não soubesse meditar. Ao fim de cada capítulo prescrevia a recitação de uma ave-maria e o seguinte iniciava com estas palavras: "Eu te agradeço, meu Senhor Jesus Cristo, que fizeste isto e isto por mim...".
Era uma coisa muito longa. Não obstante, tomei aquele livrinho e me dispus a lê-lo todo de joelhos, diante do crucificado, muito devotamente cada sexta-feira.
Uma sexta-feira estive ocupada até as oito horas da noite, quando tive a permissão do senhor meu pai[4] de poder retirar-me e ir para a cama. Como era muito tarde e as outras já estavam deitadas e aquela meditação era muito longa, fui fortemente tentada de deixar por aquela noite.
Mais de quatro vezes lutei entre o sim e o não. Enfim, com a ajuda de Deus, obtive vitória. Ó meu Pai, se soubesse de que perigo fui liberta cerca de uma hora após ter-me deitado, maravilhar-te-ias. Se me perguntares eu te contarei. Agora estou cansada de escrever e passo adiante.
Feliz aquela criatura que por nenhuma tentação abandona o bem começado. Isto digo por experiência, pois o provei.
Para ser breve, retornemos à nossa narrativa.
A minha participação na Paixão de Cristo tornou-se tão intensa, tão contínua, que não queria mais ler, mas pensar nos sofrimentos de Jesus. Não somente na sexta-feira, mas cada dia queria pensar nelas longamente, não seguindo aquela meditação escrita, mas como Deus me inspirava.
Era tanto o dom das devotas lágrimas que Deus me dava, que muitas vezes desejava poder recitar uma coroa sem chorar, por respeito humano e pela escassez de lugares aptos à contemplação. Isto fiz por três anos, antes que resolvesse doar-me toda a Deus, ainda que a astúcia diabólica procurasse desviar-me com todos os meios, fazendo as pessoas da casa suspeitarem que chorasse ora por uma loucura mundana, ora por outra.
Estes falatórios e mexericos, meu Pai, atravessavam-me o coração. Todavia, graças a Deus, tudo desprezei e nunca deixei de fazer aquilo que queria fazer. Voltava as costas para eles e, voltando o coração para Deus, aplicava-me ao meu negócio. "Pensai como vos parece", dizia no meu coração, "eu faço pouco caso disso". Assim sempre fiz naqueles três anos, pela devoção sempre mais ardente pela Paixão de Cristo. Na sexta-feira jejuava sempre a pão e água; havia feito voto de evitar alguns defeitos meus naquele dia, embora às vezes, por minha leviandade, violei este voto. Antes, na sexta-feira me flagelava inteira e me levantava toda a noite para recitar uma coroa; quando não me levantava por minha negligência, recitava duas. Enquanto agora que sou irmã, não me levanto nem faço algum bem.
Naqueles três anos, jejuava também em todas as festas do Senhor e de Nossa Senhora a pão e água.
Algumas semanas jejuava a pão e água dois dias contínuos: fiz isto mais vezes. Enquanto agora não jejuo mais. Mas tudo isso fazia não somente para ter prêmio no céu, mas muito mais na terra.
Ao fim de minha longa e devota oração, quando desejava afastar-me de Deus, a minha alma era arrebatada em tal tranqüilidade e paz que eu mesma não sei descrever. Naquele breve espaço de tempo, talvez o tempo de recitar duas Ave-marias, o meu corpo não respirava de todo, era como morto, mas a alma estava em um lugar totalmente tranqüilo e pacífico. Por isso, muitas vezes dizia a Deus com todo o coração: "Meu Senhor, se tu vês que para permanecer no mundo eu devesse separar-me de Ti, mesmo que só por um fio de cabelo, manda-me antes, não uma só, mas mil pestilências" (queria dizer: "Se tu conheces que eu possa perder esta pouca devoção que tenho").
Não conhecia outro modo de aproximar-me de Deus e de unir-me a Ele. Exceto o breve espaço que dava para a oração, o resto do tempo o passava a tocar, cantar, dançar, passear, em vaidades e outras coisas juvenis e mundanas.
Tinha tanto fastio pelas coisas devotas, os frades e as irmãs, que me desgostava até mesmo a vista. Fazia escárnio de quem lia livros espirituais e colocava todo o meu cuidado em ornamentar-me e em ler coisas mundanas.
Naqueles três anos[5] tive sempre o coração aprisionado; rezava muito à Deus que o tornasse livre, mas com minhas orações não podia obter tal dom.
Escute então, Pai, de que modo fui libertada da minha loucura. Ó Deus, és muito benigno e sempre ajudas, por mil caminhos e de mil modos, a alma que sinceramente quer doar-se a ti.
Para fazer-me sair das trevas em direção à verdadeira luz, Deus dispôs por sua misericórdia que viesse pregar em Camerino aquela verdadeira "corneta do Espírito Santo", Frei Francisco de Urbino, que agora repousa em paz. As suas palavras e a sua doutrina eram trovões e raios que fulminavam minha alma.
Por toda aquela quaresma[6] sempre propôs a tremenda palavra: "Temei a Deus".
Por essa pregação entrou em minha alma tanto temor de Deus, tanta consciência das ofensas feitas a Ele, tanto medo do inferno, que, se não soubesse que o desespero desagrada a Deus mais do que outro pecado, verdadeiramente, meu Pai, teria desesperado de poder obter misericórdia.
Em tanto sofrimento, a palavra "misericórdia" era toda a minha esperança e o meu conforto.
Desta minha angústia não dizia nada a ninguém, mas dia e noite me entregava a prantos amargos. Por temor do inferno, intensificava a minha meditação sobre a Paixão de Cristo. Enquanto antes pensava e chorava-a uma vez por dia, agora pensava e chorava de manhã e ao anoitecer. Na sexta-feira fazia esta loucura: comia três ou quatro bocados de pão, bebia um gole de água e às vezes não provava nada. Ao invés de dormir naquela noite, meditava a Paixão de Cristo, não me deitava e podia verdadeiramente dizer: "eu durmo, mas meu coração vela". Após haver perseverado por muito tempo no meu voto e na oração freqüente, comecei a escutar na alma certas vozes. Pareciam vir de longe, mas não ao ponto que não as escutasse. Diziam-me que se eu quisesse evitar o inferno, do qual eu tinha tanto terror e medo, deveria fugir do mundo e fazer-me religiosa.
Uma luz divina mostrava-me claramente que se permanecesse no mundo, pela minha vaidade, estaria condenada. Estas vozes eram-me mais amargas que o fel. De outra parte todo o meu ser experimentava forte contrariedade e repugnância pela vida religiosa. As alegrias e os prazeres do mundo me atraiam fortemente.
Encontrava mil motivos para sufocar aquelas vozes, não podia resolver-me a dar-me toda a Deus, porque o meu coração não era ainda complemente livre das paixões: agora sei que quem quer servir somente a Deus deve ser despojado e liberto de tudo e de todos.
Deus onipotente, em seu imenso amor, me inspirou escrever uma carta estritamente pessoal ao pregador, não por necessidade de minha alma, mas por zelo da salvação de outros; assim fiz, sem esperança de receber resposta. Isto ajudou-me mais do que a outros.
Não me recordo que naquela carta houvesse escrito palavras que pudessem fazer pensar bem ou mal de mim; somente encerrei o escrito assim: "lembra-te de mim na serena elevação de tua mente". Isto disse porque acreditava que cada servo de Deus sentisse na oração aquela paz e aquele enlevo que eu mesma experimentava; tanto mais ele (Pe. Francisco)que me parecia, não criatura humana, mas anjo de Deus.
Padre Francisco, por inspiração de Deus, respondeu-me de modo muito sigiloso, para que não houvesse escândalo. Disse-me que "a respeito de tudo quanto lhe havia escrito "fez todo o possível, quer em público, quer em privado. Juntou enfim estas santas palavras: "Minha filha, esforça-te de manter teu corpo e o teu coração imaculados como a Santa virgem Cecília, a fim de que Deus não disponha de ti de outro modo; não te deixes vencer pelas paixões que seguidamente turbam a tua mente, mas esforça-te de vencer a ti mesma. Permanece bem. "
Experimentei uma grande angústia lendo estas palavras, porque não me pareceram simples palavras, mas relâmpagos agudíssimos mandados por Deus para me traspassar o coração. Eu sabia que o padre nunca me viu nem falou comigo; como então conhecia tão bem o meu tormento íntimo?
Após ter-me acalmado, disse a Deus: "Tu, Senhor, me falaste pela boca deste padre, porque eu sei que ele não conhece o estado de minha alma; todavia me diz que eu vença a mim mesma, se quero ser livre. Isto proponho-me a fazer. "
Verdadeiramente, meu Pai, lutei. Consegui três ou quatro vezes não querer ver aquilo que me agradava e deleitava e logo fui libertada daquela paixão.
Por isso me afeiçoei tanto ao padre Francisco, talvez muito, mas foi necessário, porque o amor falso e mundano se transformou em amor santo e espiritual. Amei-o tanto, porque reconhecia o grande bem recebido de suas palavras.
Como uma vez Deus solicitou a seu povo sacrificar no deserto, assim Ele agora solicitava a minha alma de abraçar a vida religiosa.
Mas a minha malícia não queria de nenhum modo consentir com tais vozes e mandatos divinos, antes me rebelava fortemente. Não havia mais a desculpa do amor mundano e então encontrava outras; sabia que ninguém poderia arrancar-me das potentes mãos paternas, que por grande amor me tinham tão apertada. Parecia-me impossível, ainda que eu o quisesse, poder afastar-me dele.
"Meu Deus, que queres fazer desta alma falsa e meretriz? Que necessidade tens, doce Jesus, dos meus feitos? u que com tanta insistência me procuravas e desejavas? Como eu recompensei o teu amor, meu Senhor?" Aqui calo.
Quais e quantas ofertas Deus me fazia para arrancar-me das potentes mãos paternas! Ao recordá-lo, meu Pai, me despedaça o coração e não posso contar-lhe sem grande sofrimento.
Este pacientíssimo e sapientíssimo Deus, vendo a dureza e a obstinação de meu coração, deliberou de amolecê-lo por outro caminho.
Na vigília da anunciação[7] Pe. Francisco[8] falou do amor divino que inflamou o coração da Virgem no momento do anúncio. Falava com tanta força e fervor que parecia um serafim; afirmou que havia mais doçura em uma centelha daquele amor que a Virgem sentiu do que em todos os amores do mundo.
Após aquela pregação, ajoelhei-me diante do altar e fiz voto à Virgem Maria de conservar imaculados todos os meus sentimentos, a fim de que Deus não dispusesse de mim de outro modo.
E este pacto: que Deus me desse a graça de sentir em mim ao menos uma centelha daquele amor que Maria havia sentido naquele dia. Em tal oração perseverava dia e noite com muito fervor e desejo. Mas porque não era conveniente que tão precioso tesouro, como é uma centelha do Divino Amor, fosse colocado no vaso imundo de minha alma, quis Deus purificá-lo do seguinte modo: no sábado santo[9], contrariamente aos costumes e malgrado a oposição dos prelados (porque naquele dia celebravam-se muitas funções na catedral) o pregador quis falar. Poucas pessoas estavam presentes, mas ali bem estava aquela para a qual Deus fazia ocorrer aquela pregação.
O padre pede a todos que lhe perdoassem se pregava naquele dia, mas era inspirado a fazê-lo para a tranqüilidade de sua consciência.
Porque era a vigília da Páscoa, queria esclarecer quais as coisas que tornavam ilícita a santa Comunhão. Disse muitas, mas aquela que me dizia respeito era essa: "Não deve comungar quem se confessa sem determinar-se seriamente a deixar todas as ocasiões de pecado mortal".
Então disse em meu coração: "Pobre de mim: eu quase sempre comunguei sem sério propósito; não tive jamais a vontade e disposição de deixar as minhas vaidades e mundanindades, senão agora. Esta tarde, quando me confessar, me acusarei deste pecado".
Assim fiz. Frei Oliviero, que me confessava, perguntou: "Há quanto tempo que te confessas e comungas de tal modo? "Respondi: "Quase sempre". E ele: "Minha filha, não quero de nenhum modo que amanhã comungues, mas reflete sobre os teus pecados muito bem e volta em uma semana para uma confissão geral".
Assim fiz, ainda que experimentasse muita confusão e vergonha de não comungar como as outras no dia de Páscoa; com efeito, ouviu-se sussurrar: "Deve ter feito algo grosso!"
Bem é verdade que "quem não dá aquilo que dói, não pode ter aquilo que quer".
Assim aconteceu comigo daquela vez.
Feita aquela confissão, por graça de Deus, tive uma forte dor das minhas culpas.
É verdade que por leviandade e superficialidade não me fazia escrúpulos de cada pequena coisa como faço agora, mas aquilo que não fiz então, deveria fazer depois, como verás. Então fiz tudo quanto tinha condições de conhecer.
Na oitava do sábado santo me confessei com Frei Oliviero em São Pedro, comunguei e depois falei com meu devoto padre Francisco de Urbino, com quem nunca havia falado antes. O padre perguntou-me se desejava fazer-me irmã; disse que não. Pareceu entristecer-se e disse: "Agora te tornaste sã, não peques mais. Deus te dê a paz!"
Assim, toda consolada, voltei para casa.
Quando a minha alma foi purificada no modo acima narrado, começou a divina bondade a martelar muito mais forte e as vozes não eram mais distantes, mas próximas, muitíssimo próximas e tão claras que algumas vezes tapei as orelhas com as mãos para não ouvi-las, do momento que de modo nenhum queria consentir com elas; mas nada adiantava. Escutava-as sempre, porque falavam à alma e não ao corpo.
Por isso, cada vez que ia à oração, parecia-me mesmo de ir à guerra. Pois há talvez maior bata-lha do que esta?
Uma vez entre as outras, na qual o benigno Espírito de Deus me constrangia com mais veemência e eu com mais força me rebelava, ameaçou-me e disse: "Faze aquilo que queres, dá-te ao mundo; não terás jamais o bem".
Imagine, caro Pai, quanto fiquei mal.
E pensava, e pensava; e de modo algum queria persuadir-me a fazer-me irmã.
Uma sexta-feira, durante a oração, adveio um tal conflito, uma tal batalha em minha alma entre o sim e o não, que pela grande agonia, suava o corpo inteiro. Enfim a minha vontade, que sempre permaneceu forte e vigorosa, espontaneamente, sentada como juiz em cátedra presente à luta cruel, emitiu a sen tença contra mim. Deliberei de servir a Deus com tanto afeto e coragem que, se houvesse necessidade de sofrer o martírio, prontamente o teria escolhido antes de arrepender-me de um tal propósito.
Naquele instante vem-me infusa a inspiração de fazer-me irmã no Mosteiro de Urbino. Nem jamais desejei ir em outro lugar.
Como é de sumo refrigério a um corpo martirizado ser colocado em um leito macio, cheio de flores e de rosas, assim aquele firme propósito foi de grande repouso para minha mente martirizada.
Permaneci pois numa grande paz, toda tranqüila, repousada e contente.
Ó meu Deus! Agora te peço: assiste-me e permanece presente junto a mim. Enfim não tenho a dizer senão coisas angélicas e divinas.
Meu doce Senhor, dá-me graça que com esta envenenada língua eu narre as tuas misericórdias, para minha confusão e vergonha: assim que tu, meu Pai, possa dizer-me: "Está muito bem para ti, barquinha, este e todo o mal que tens. Que coisa haveria podido fazer Deus por ti que não o fez"?
É toda a verdade!
Por tal firme propósito unida a divina vontade, em poucos dias se abriram todas as cataratas do céu sobre mim e o dilúvio das abissais misericórdias divinas absorveram minha alma pecadora.
Então Deus, Pai benigno, foi ao encontro do filho pródigo, então docemente o acolhe nos seus braços paternos e benignamente o aperta a si. Então com a própria boca lhe dá o doce beijo de sua santa paz, não somente uma ou duas vezes, mas muitas e muitas vezes.
Parecia que Deus, sumo e verdadeiro bem, não pudesse saciar-se de ter apertada nos seus santíssimos braços a minha alma pecadora.
Digo isto com toda a verdade.
Muitas e muitas vezes fugia por santa humildade, pedia-lhe humildemente que deixasse minha alma, que não a tivesse mais em seus santos braços e às vezes saía da oração.
Mas pouco me adiantava fugir ou pedir. Deus não me deixava até que agradasse à sua clemente majestade. Às vezes, após a oração, transcorria muito tempo antes de ser-me entregue a alma.
Não escrevo, meu Pai, as dulcíssimas , amorosas palavras todas plenas de manjares e mel, de júbilo, alegria e regozijo, de fazer enamorar e amolecer um coração de pedra. Porque diz o profeta: "Escondi no coração as tuas palavras para não ofender-te com o pecado"(Salmo 118).
Mas verdadeiramente e certamente podia dizer com o Cântico: "A minha alma desfalece, apenas falou o meu dileto"(Ct 5, 6) e a palavra do profeta: "Como são doces à minha boca as tuas palavras, mais que o mel ao meu paladar"(Salmo 118).
Não me lembrava mais do temor que tive dele e nem mesmo lhe recordava algum pecado meu. Verdadeiramente compreendi por experiência que em mim se atuou aquela palavra do profeta Ezequiel: "Quando o pecador quiser converter-se, eu não terei mais em conta suas culpas".
Então submergia e abismava-me toda no amor de Deus.
Meu Pai, assim aprendi às minhas custas que "o temor de Deus é o princípio da sabedoria, isto é, o princípio da divina doçura"(Cf. salmo 110).
Como é grande o temor, assim é grande o sabor do amor que se segue. Pois o temor que Deus me doou foi grande e imensurável, assim foi grande e imensurável a doçura do amor.
Então soltei os freios do amor que com grande fadiga por anos havia detido. Deixei-o andar impetuosa e furiosamente; derramei-o to do sobre o meu dulcíssimo Esposo: Jesus Cristo bendito. Assim o chamava porque assim se mostrava à minha alma; as vezes em forma de bondoso Pai, às vezes com tanta familiaridade e intimidade que parecia um caríssimo amigo e companheiro, mas na maioria das vezes em forma de dulcíssimo Esposo.
Quando Deus se comunica à alma em forma de Esposo, eu creio — por aquela pouca experiência que tive — que isto seja o mais doce e suave gosto que Deus possa comunicar nesta vida mortal. Se aquele sabor tão suave fosse duradouro, teria-me vindo vontade de morrer, porque parecia-me possuir a vida eterna e o paraíso já neste mundo.
Outra diferença não acredito que há entre o paraíso e esta felicidade, se não aquela que há entre o sinal e todo o pagamento. Este é certo e dura eternamente, enquanto aquele podemos perder.
Mas, ai de mim, esta diferença não é pequena, mas infinita.
Muitíssimo me maravilhava e admirava pela luz que Cristo Jesus me dava para ver-me tão profundamente amada, não obstante meus pecados.
Um dia, com profunda humildade lhe disse: "Ó Senhor, sei bem que os demônios ousam blasfemar-te, mas sei também que têm maior ousadia de chamar-te amante da iniqüidade. Peço-te, meu Jesus, não te faças chamar-te assim; eu não sou outra coisa que profunda iniqüidade e Tu tanto Te agradas de mim. Que outra coisa posso dizer de Ti senão amante da iniqüidade?"
Então o doce Jesus benignamente me responde: "Sabe, minha filha, que não sou amante da iniqüidade, não me agrado com ela. Mas me comprazo na inocência na qual tu nasceste e na qual ora te encontras".
Eu ignorava os vocábulos espirituais e não compreendi que coisa significava esta inocência. Mas quando me tornei irmã em Urbino, encontrando em um livro tal palavra, referida a uma alma a quem Deus havia concedido tal graça, perguntei: "Que significa: Eu te restituirei à primeira inocência"? Aquelas verdadeiras servas de Deus me explicaram o que aquilo significava: "Eu te perdôo os pecados quanto à culpa e à pena".
Assim soube que me foram perdoados todos os pecados.
Até aquele tempo havia pensado que esta inocência fosse qualquer coisa bela doada à alma, mas não sabia em que coisa consistisse.
E Cristo bendito acrescentou: "Esta inocência, eu a coloquei em tua alma; é minha, não tua. Por isso em mim mesmo me comprazo, não em ti".
Declarou-me difusamente como Ele não amava e não se alegrava se não consigo mesmo lá no céu e na terra, porque nenhuma coisa sem Ele é amável. Assim me tornei livre da soberba e da vã gloria.
Meu Pai, este é um assunto que, quanto mais falo, mais haveria para dizer; e quando houvesse dito, e dito muito, em confronto com aquilo que foi, teria dito nada. Basta que tu possas entender claramente quanta paz e tranqüilidade, quanta doçura e amor, quanta confiança e familiaridade Deus me deu naquele santo perdão espiritual. Seguidamente, nos divinos colóquios, encontrava-me entre os doces braços do celeste Esposo, no amor e familiaridade do Pai Celeste, na graça e consolação do Espírito Santo.
Ó tempo graciosíssimo, sereno, luminoso, quanto te tornaste tempestuoso, escuro, tenebroso! Ó paz incompreensível, quanto te mudaste em guerra mortal! Ó doçura inefável, como mudaste em grandíssimo fel e amargura! Ó amor que abundas a alma, te converteste em cruel ódio! Ó amizade, ó familiaridade indizível, como mudas te em discórdia e inimizade! Ó braços dulcíssimos, como me deixastes cair de tanta sublimidade ao profundo do inferno!
Ai de mim, foi uma queda terrível; mísera alma minha, é natural que tu tenhas todos os ossos quebrados! Chora agora, suspira agora e dize: "Está prostrada na dor a rainha das gentes, com as faces lacrimosas e não há quem a conforte: todos os meus amigos se foram e deixaram-me só, todo dia oprimida pela dilaceração. Quem jamais me dará água para a minha cabeça e uma nascente de lágrimas aos meus olhos para chorar a minha desolação, minha viúvez e infelicidade? Ai de mim, caiu de minha cabeça a coroa, dos meus olhos brotam rios de lágrimas, porque não conservei puro o amor de meu Esposo. "[10]
Choram comigo céu e terra, choram todos sobre mim.
Se não tens coração de pedra, meu diletíssimo Pai, chore sobre tua desolada filha! ê e considera, como disse, "se há dor semelhante a minha".
Esta foi e é aquela grande chaga escondida que há tanto tempo me despedaça o coração.
Enfim mostro-a a ti, descubro-a para ti, porque não posso mais escondê-la, não posso mais cobri-la. Medica-a se podes, mas ao menos tem compaixão; será para mim de algum conforto. Não posso mais suportá-la, não consigo mais sofrer aquela chaga.
Sinto a dor consumir-me os ossos. Sou como ébria pelo sofrimento e a amargura do coração, quase fora de mim mesma. Não sei que coisa digo e faço. Por isso, se me engano perdoe-me meu Pai, porque: "Dá a ela dor e pranto em proporção de quanto ela esteve entre a alegria e a glória"(Ap 18, 7).
Agora te direi, meu diletíssimo Pai, com toda a simplicidade e verdade, como fiz até agora, a ordem da minha vida espiritual: como se desenvolveu até o tempo em que começou a minha tribulação.
Por graça de Deus, Ele que é a flor do campo, o lírio dos vales e sacia-se entre os lírios, para dar sinal certo que esteve em minha alma, deixou-me três lírios primaveris e perfumados.
O primeiro foi este: um tal ódio do mundo que a quem me houvesse proposto: "Que coisa escolhes: estar no mundo, ser imperatriz com a certeza de ser salva ou entrar no Mosteiro com o perigo de ser condenada?" no mesmo instante responderia: "Escolho entrar na vida religiosa antes que estar no mundo com todas as suas seduções e glórias. "
Isto pelo grande ódio que tinha por ele, porque não me parecia mais mundo, mas aquilo que era e é, isto é, um inferno. O que é em realidade.
O segundo lírio foi a humildade de coração. Sinceramente confessava e acreditava de todo o coração que sobre a terra não havia maior pecadora do que eu. Entendia que a maior misericórdia que Deus podia usar para comigo era salvar-me e a maior justiça era condenar-me. Quanto mais Deus me preenchia de dons e graças, tanto mais me considerava vilíssima; isto fez porque sempre estimei todos os seus dons como débitos e não riquezas. Deus mesmo, verdade amável, assim me mostrou e ensinou.
O terceiro lírio foi um abrasado desejo de "mal sofrer"[11], tão veemente que se quisesse dar-me o paraíso sem o "mal sofrer", não o teria querido. Orava a Deus, lhe dizia com doce afeto: "Se o grande amor que me mostraste e me mostras é sincero e não uma brincadeira, dá-me este verdadeiro sinal: que eu seja revestida daquela veste da qual foi revestido o teu dulcíssimo Filho, isto é, o sofrimento. Foi-me prometido e anunciado, tanto que fui saciada mais de quatro vezes. "
Logo adoeci daquela doença da qual não me curei mais e que trouxe por mais de treze anos (desde 1476?) sempre com prazer. Mas de um ano para cá me parece que não a posso mais suportar, enquanto antes estava contentíssima; disto, não em mim, mas no Senhor me glorio, porque dele somente a minha paciência.
Afligida em meu corpo por mortal, cruel enfermidade, como outro Jó, salmodiava e agradecia a Deus no meu coração.
Após sete meses, durante os quais estive em perigo de vida, deixei o leito.
Frei Gregório[12], que agora triunfa glorioso no céu, me ensinou e levou a pensar na vida de Cristo recitando a coroa de Maria, que me mantinha ocupada por três horas.
Eram tantas as consolações e as doçuras que encontrava nela, que não sabia nem podia separar-me. Cada coisa, ao meu paladar, era mel, açúcar, alimento suavíssimo e saborosíssimo; e tudo aquilo que meditava não me parecia que já tivesse acontecido, mas como se acontecesse pela primeira vez. Sentia-me fisicamente presente às palavras, aos gestos da gloriosa virgem Maria e do pequenino Jesus. Acompanhava-os em suas cansativas viagens.
Mas, contemplando a transfiguração de Jesus, foram-me prometidas coisas tão altas e grandes que nunca escuto a palavra "transfiguração" sem me alegrar. E seguindo a ordem do profeta que diz: "Provai e vede", após ter provado, me vem um desejo tão grande de ver Jesus, que toda a minha oração não era outra coisa que um contínuo desfalecer pelo desejo de ver a sua sereníssima, amabilíssima face. E os prados, as flores, as rosas, parecia que me falassem da sua beleza; e quando via o céu estrelado, muito mais forte me consumia, dizendo no meu coração: "Os céus narram a glória de Deus e a obra de suas mãos anuncia o firmamento."
Ó meu doce Jesus, se são tão belas as obras das tuas mãos, que será o teu rosto resplendente? Mostra-te a mim, deixa-te ver, meu benigno Senhor, porque me fazes afadigar-me tanto? Somente tu és a minha vida, minha esperança, todo o amor do meu coração e da minha alma. Porque me velas, me escondes a tua santíssima face?
Então eu não fugia mais dele, mas evidentemente corria atrás dele, "ao perfume dos seus aromas". Dizia-lhe: "mais doce do que o vinho são os teus amores e a fragrância das tuas vestes é melhor do que todos os perfumes". "Que Ele me beije com o beijo da sua boca".[13]
E após haver-me feito penar seis meses por tal desejo, assim me satisfez: eu lhe pedia para ver a sua gloriosa face e Ele mostrou-me as costas[14]. Brincando dizia: "este Jesus Cristo me faz cada coisa pelo avesso!"
Aquela vez verdadeiramente fui ouvida "pelo avesso", mas contentada "pelo direito", pois permaneci toda satisfeita e contente.
Então escute como se mostrou a mim: um dia[15] atendia a oração e experimentava claramente que Ele estava em minha alma. Quando Jesus voltou-se para afastar-se, disse: "Se me queres ver, olha-me. "Como uma pessoa, quando se afasta de uma outra lhe vira as costas e se vai pela sua estrada, bem assim Ele fez a minha alma.
Quando comecei a vê-lo estava longe de mim mais de seis passos e caminhava avançando para uma longa sala, no fundo da qual estava uma pequena saída como uma porta de quarto. Eu o segui sempre com os olhos, até que inclinou a cabeça por causa de sua altura, entrou naquela pequena passagem e depois não o vi mais, nem Ele, nem a sala, nem a saída. Assim vi as costas e não o rosto. Estava vestido com uma veste candidíssima, tal brancura não se encontra neste mundo, longa até o chão. Na barra da veste havia uma borda da altura de um dedo com letras de ouro, que não pude ler porque estava muito longe. Jesus se afastava caminhando lentamente e não parava. Tinha aos flancos uma faixa de ouro maciço, belíssima, alta dois dedos. Superava todos os homens dos ombros para cima. Os cabelos pareciam de ouro, longos quase até a cintura, um pouco crespos. Não podia ver toda a testa, por isso não pude descobrir se usava coroa , diadema ou guirlanda de flores e rosas. Isto não quis que eu visse. Penso que trazia na cabeça uma coisa tão bela que eu não merecia ver. Pareciam-me tão belos aqueles louros, copiosos cabelos sobre as largas e bem proporcionadas costas; embelezavam as candidíssimas vestes. Era uma coisa maravilhosa!
Naqueles dois anos e meio, nos quais ainda permaneci no mundo, tive muitas graças e dons de Deus que aqui não escrevo, porque é muito melhor dizer menos que demais. Assim fazendo permaneço mais tranqüila e contente.
Sabe, meu caro Pai, que naquele tempo conheci todos os meus afãs e tribulações futuras, a fim de que eu fosse prudente e paciente neles. Infeliz de mim! Não fui nem um nem outro, mas comportei-me mesmo como uma "ovelhinha selvagem". Por isso não posso fazer outra coisa a não ser lamentar-me e dizer: "Ó vós todos que passais pelo caminho do divino amor, parai e vede se há dor igual à minha" (Lm 1, 2).
"Aquela alma infeliz que era esposa e confidente do sumo Deus e estava em meio às delícias, apertou nas mãos o esterco fétido do demônio" (livre tradução de Jeremias).
Capítulo XI
Veio a plenitude dos tempos, porque cada coisa tem o seu tempo (Coelét), no qual fui provada, se era ouro ou chumbo; provada por enfermidade, tentação, ameaça e cárcere. Com a ajuda de Deus, respondi a cada coisa com a mesma moeda, isto é, refutei as carícias e abracei com alegria as enfermidades e as ameaças.
Deus, como havia me prometido, quis libertar-me da escravidão mundana do Egito e das mãos do potente faraó[16], o qual por dois anos e meio teve o coração endurecido e, se não houvesse temido os castigos de Deus, nunca teria permitido que eu entrasse no Mosteiro, como ele mesmo afirmou.
Assim, espoliado o Egito, isto é, plena e rica de graças espirituais, a pés enxutos, isto é, sem nenhum retrocesso, atravessei o mar vermelho, isto é, deixei a vaidade das pompas mundanas, os prazeres e os adornos da corte; coisas estas que parecem de cor vermelha, muito belas de se ver como a cor vermelha, mas na realidade não são nada, a não ser fumaça e fogo de palha.
Voltei-me atrás "para o mar" e vi submerso o faraó com todo o seu exército, isto é, o demônio com todos os seus laços, pecados e vícios.
Assim fui colocada no deserto da santa religião, isto é, no sagrado Mosteiro de Urbino, e tu mesmo, meu Pai, estiveste presente e o testemunhaste. Fiquei verdadeiramente tão contente quando me senti livre do mundo e dos seus laços, que pude cantar como a profetisa Maria: "Cantemos ao Senhor porque triunfou admiravelmente: lançou ao mar cavalo e cavaleiro. "(Ex. 15, 1).
Pode ser que outros, pela graça de Deus, deixem o mundo com a mesma alegria e talvez até maior, mas não o creio.
Não te maravilhes, caro Pai, se em qualquer coisa usurpei a dignidade e a figura do povo eleito, cumulado de tantos benefícios e favores divinos, porque não sei a quem me possa convenientemente comparar pelos inumeráveis benefícios recebidos de Deus e muito mais pela minha imensa dureza e ingratidão.
Até aqui narrei, Pai, a minha vida espiritual no mundo, na qual provei uma faísca do divino amor, por intercessão e mérito da gloriosa Virgem Maria, que sempre invocava. Foi verdadeiramente uma faísca em confronto do fogo essencial do Amor Eterno. Todavia, foi tal e tanto que não podia suportar nem conter mais. Muitas e muitas vezes disse: "Basta, meu Deus, basta!"
Agora direi o que aconteceu depois que vesti o hábito das clarissas. "Como nas planícies do mundo há o canto das aves, e o esplendor das flores, e os escondidos refúgios dos animais", como diz Ubertino de Casale, assim no santo Mosteiro de Urbino encontrei os dulcíssimos cantos das orações enlevadas , a beleza dos bons exemplos, os secretos tesouros das graças divinas e dos dons do céu.
Movida pelo Espírito Santo, veio-me um santo desejo de penetrar "no interior do deserto", isto é, nas secretíssimas penas do coração de Jesus.
Então, no profundo do coração, rejeitei toda a doçura do maná celeste, não por náusea como o ingrato povo eleito, mas por santa humildade, considerando-me indigníssima daquele dom que talvez teria podido dissipar.
Com coração puro, pedi a Deus que me alimentasse e saciasse dos amaríssimos alimentos da sua Paixão, porque a minha alma tinha fome e sede somente disto. Clamava só por aqueles, não desejava outros.
Podia dizer como a dileta esposa do Cântico: "O meu esposo é para mim um saquinho de mirra e repousará sobre meu peito"(Ct 1, 12).
Então resolvi transcorrer todo o tempo da minha oração na meditação da Paixão de Cristo e não queria mais meditar nem pensar em outra coisa. Esforçava-me quanto podia para entrar no mar amaríssimo das penas mentais do coração de Jesus. Naquele mar quereria imergir-me se houvesse podido.
Não é de maravilhar-se se me veio um aceso desejo de entrar dentro do teu coração, ó bom Jesus, porque um dia tu me mostraste que o meu nome estava escrito nele com letras de ouro.
Ó! quanto pareciam belas em teu coração vermelho as grandes e esplendentes letras de ouro: "Eu te amo, Camila!"
Mostraste-me tudo isto, ó bom Jesus, porque eu me maravilhava muito que tu me amasses tanto. Então Tu disseste que não podias não me amar, porque me trazias escrita no coração e, erguendo o glorioso braço, fizeste-me ler aquelas doces palavras.
Ó miserável de mim, porque não retomo um pouco de conforto, recordando tanto bem e amor do teu dileto Cristo? Todas estas recordações não me são conforto, mas como dardos pungentes traspassam-me o coração. Por isso não posso saciar-me de dizer: "Ó vós todos que passais pelo caminho do divino amor, parai e vede se há dor igual a minha dor"(Lm 1, 12).
Retornemos, meu Pai, à nossa narrativa. Por dois anos, talvez por dois anos e três meses, permaneci em Urbino sempre perseverando em tal desejo e oração, depois retornei a Ca merino. Durante aquele tempo fui introduzida por admirável graça do Espírito Santo, no secretíssimo tálamo do Coração de Jesus, verdadeiro e único mar amaríssimo insondável a todo o intelecto humano e angélico.
Muitas vezes teria submergido naquele mar se a potente mão divina não me houvesse ajudado. Tal amargura era muito menos suportável que a doçura do seu divino amor e dizia: "Basta, basta meu Senhor, não posso mais. Sinto-me morrer, este amor não tem fim nem fundo..."
Não digo outra coisa agora, nem direi noutro lugar. Porém não quero omitir isto: embora dos sofrimentos mentais de Jesus me fossem mostrado somente o quanto podia suportar e o quanto minha alma, por dom do Espírito Santo, podia compreender, todavia em comparação daquilo que foram realmente, o compreendi quanto seria um grãozinho de areia em comparação do céu e de toda a terra. Antes, muito menos.
Durante aqueles dois anos no bendito Mosteiro de Urbino, a minha alma, por divino influxo do Sol da justiça, florescia admiravelmente de santos desejos, a Deus agradáveis. Podia verdadeiramente dizer: "As flores germinaram na nossa terra"(Ct 11, 12).
Porém, mais bela do que todas as flores, ramificava e floria com suavíssimo odor aquele lírio primaveril que foi plantado ainda na terra estéril de minha alma no início da minha conversão, isto é, um ardente desejo do "mal sofrer".
Naquele santíssimo tempo este lírio mais do que todos os outros foi abençoado, cultivado, cercado pela mão do verdadeiro rei Assuero, Cristo Jesus bendito; irrigado, podado e sustentado com as águas de suas penas mentais.
Embora naqueles anos estivesse muitas vezes em perigo de morte, todavia orava a Deus dizendo: "Meu Senhor, quando me conduzirás naqueles pastos abundantes, naqueles hortos amenos do "mal sofrer" onde pastam as tuas ovelhas prediletas?
Ó meu Senhor, muito demoras. Não te arrependas de dar-me aquilo que me prometeste, não me prives, meu Senhor, de tanto bem.
Então me golpeou a amarga tribulação de minha Profissão religiosa, pela qual se turbou toda a Ordem franciscana: frades, irmãs, senhores e seculares; não a escrevo por prudência.
Não quero que se possa pensar que eu fale com segundas intenções. Mas isso não posso calar. Verdadeiramente, pela minha Profissão houve grande transtorno na terra, mas esteja certo, meu Pai, que no Céu dos Anjos fez-se grande festa e alegria... Não creio que tal festa se fizesse por minha causa, mas estou certa que isto aconteceu porque, pela minha Profissão, teve início este bendito Mosteiro de Camerino, onde uma angélica fileira de virgens arrancadas do mundo, haverão pelos séculos de cantar a Deus e implorar pelos homens.
Por isso era justo e conveniente que o demônio semeasse confusão na terra, enquanto os anjos faziam festa no Céu.
E exatamente naquele mesmo ano, por disposição divina, meu Pai diletíssimo, foste eleito vigário[17]. Nunca o foste antes e nem mesmo o foste depois. Deus sapientíssimo quis que, como tu foste por sua bondade e graça, princípio e origem da minha conversão, assim te reencontrasse no meio daquelas minhas tribulações e afãs. Era bom que tu, e não outro, fosses vigário naquele tempo, a fim de que, quem havia dado princípio a tanto bem fosse testemunha de tanto transtorno entre frades, irmãs, senhores e senhoras. E de certo Deus quis que, como tu meu Pai, foste partícipe daqueles afãs e tribulações, o fosses também de todo o bem que se faz e se fará neste sagrado Mosteiro.
E embora tu, meu Pai, muito te fatigaste a fim de que não viesse a ser ereta durante o teu vicariato, Deus quis que justamente tu, e não outro, com a tua autoridade e presença, desse princípio à vida clariana neste sacro claustro.
Podes fugir de Camerino quanto te parece, mas em nenhuma outra parte do mundo, obtiveste tanto fruto e bem quanto aqui. Por isso o demônio, conhecendo o bem que fazes a Camerino, faz com que sintas ódio dela e lhe desejes fugir. Ousei dizer-te isto como confidência de filha.
Quando por obediência a ti e à autoridade papal fui transferida para este Mosteiro junto com outras reverendas Madres, não ignorava, antes estava bem consciente, que à Divina Majestade agradava que eu retornasse aqui, mas para maior consolação minha, Deus quis me dar um outro sinal mais nobre e claro. Não foi a primeira sexta-feira, mas se bem me lembro, a segunda[18] depois que entramos neste Mosteiro.
Irmã Constância, que tu conheces, ficava junto ao fogo e eu cozia. Ela começou a cantar aquele louvor que diz:
Alma bendita
do alto Criador.
Olha o teu Senhor
que confiante te espera.
Eu cantava com ela. Quando cheguei àquelas palavras: "olha os pés furados, olha aquelas mãos", não pude mais. Caí em desmaio e desfaleci nos braços da irmã que me estava próxima. As presentes pensaram que fosse indisposição (um mal-estar passageiro) porque outras vezes havia tido desmaios, mas desta vez foi angústia espiritual, porque a minha alma foi tomada pela contemplação do mistério da deposição de Jesus da cruz nos maternos, desolados braços de sua aflita Mãe. Escutava o pranto da dolorosa Mãe; ouvia-lhe a voz doce e dolorida; escutava a enamorada discípula Madalena gritar forte e amargurada: "Meu Mestre!", o dileto discípulo João chorar amargamente e dizer silenciosamente: "Meu Pai, meu Mestre, meu Irmão!" e os lamentos das piedosas mulheres.
Permaneci em tal estado desde pouco antes de completas[19] até a uma da noite. Por muitas horas ainda teria permanecido assim, se não me fizesse violência para tornar-me em mim, para não dar preocupação às irmãs. Enquanto estava em tal estado, ora ouvia bem as vozes das irmãs, ora ouvia menos.
Mas quando se faziam mais forte os choros da gloriosa Virgem, eu não escutava mais nada deste mundo; então parecia-me que minha alma fosse quase separada do corpo. Era insensível àquilo que se dizia e fazia ao meu redor. Encontrei-me tão cansada e aflita, que por quinze dias o meu corpo parecia saído da sepultura, tanto eu mudei e transformei o rosto.
Antes deste fato eu pensava pouco ou nada no mistério da deposição da cruz, quando a Virgem Maria teve o seu diletíssimo Filho morto entre os braços, pois toda a minha mente era ocupada na meditação do Crucificado ou de Jesus agonizante no Horto das Oliveiras. Cristo sofredor me atraía mais do que tudo. Mas desde então sempre fui devota também do mistério da deposição. Aquele fato deixou-me um sinal: por outros dois anos não podia olhar o Crucificado, não podia ver escadas, martelos, pregos nem alicates.
Este foi o sinal que Deus me deu para fazer-me conhecer que agradava a Ele o meu retorno a Camerino.
No entanto, continuo a dizer: "Ó vós todos que passais pelo caminho do divino amor, olhai e vede se há dor igual a minha dor".
Como o povo hebreu foi batizado na água e no fogo, assim a minha alma foi batizada antes nas águas das lágrimas de contrição e devoção, e depois no divino seráfico fogo.
Agora escuta, meu Pai, em que modo e por quais caminhos Deus quis me batizar e purificar-me das minhas culpas, por meio do fogo, a fim de dar-me novos favores e graças.
Seguiu um ano de tribulações, durante os quais fiquei amorosamente aflita. Deus assim dispôs para meu mérito e coroa, porque queria que este Mosteiro fosse fundado sobre o título e a Regra das Irmãs Pobres de Santa Clara, como o é no presente.
Naquele ano, por graça de Deus, foi eleito nosso pastor e vigário, Frei Pedro de Mogliano, alma gloriosa, alma santa e verdadeiramente bem-aventurada pelos milagres feitos em vida e na morte.
Este, vindo ao Mosteiro, após outras coisas, disse-me em presença de outras irmãs: "Irmã Camila, prepara-te porque quero confessar-te antes que eu parta".
Eu logo respondi:
— Mas não tenho necessidade de confessar-me!
Replicou: "Tive uma inspiração; quero confessar-te. Sinto que tens necessidade".
E como continuava a dizer não, afastou as irmãs e disse: "Sinto que é vontade de Deus, porque não te queres confessar?"
E eu:
— Porque não quero. Não tenho necessidade.
Parecia que lhe desagradasse um pouco e disse suspirando: "Não me satisfaz esta resposta. Pense melhor".
E saiu.
Meu Pai, muito benigno foste para com esta alma!
Tu partiste de Camerino a apenas um dia e já me queimava o coração e dizia a mim mesma: "Como fui vil em responder deste modo ao Padre Vigário. Assim que voltar quero confessar-me com ele".
E lhe escrevi, pedindo-lhe que perdoasse minha grande asneira.
Em poucos dias cresceu tanto este meu desejo de confessar-me com ele que não encontrava paz. Veio tanta luz sobre tantas coisas que, por consciência larga, nunca confessei.
Escrevia cartas ao Padre para pedir-lhe que viesse. Mas ele, como raposa astuta, demorava para aumentar o meu desejo, como depois me disse.
Neste tempo me foi dado, por divina graça tanta dor dos meus pecados que chorava amargamente tanto os confessados como os não confessados.
Sofria imensamente por haver ofendido a infinita bondade divina; tinha grande ódio de mim mesma e desejava com todo o coração que, após a minha confissão o Padre Vigário sentisse por mim grande ódio e desprezo.
Mas porque queria ser desprezada, Deus prometia-me que me teria amor. E assim foi.
Feita a minha confissão geral com grande sinceridade, luz e desprezo de mim mesma, o Padre Vigário ficou tão satisfeito e contente que desde então me amou de santo e espiritual amor, mais do que toda outra filha espiritual; e disto estou certa. Eu fiquei satisfeita e contente mais do que ele e com a alma em paz.
Poucos dias depois, não somente durante a oração, mas quase continuamente também fora da oração, me aparecia na alma uma irmã da nossa Ordem com o véu preto na cabeça como uma de nós, belíssima.
Eu via tão claramente como jamais havia visto outra coisa com meus olhos. Agradava-me muito, mais que se a houvesse visto com os olhos do corpo.
Fazia-me muitas carícias e me mostrava muito amor, com o rosto alegre e atraente. Eu experimentava uma imensa alegria em sentir-me tão amada; mas me causava estupor e me maravilhava, e não podia pensar quem fosse.
Ela parecia agradar-se deste meu estupor, como se me dissesse: "Não me conheces?"
Quando aparecia-me aquela monja, minha alma instintivamente se colocava de joelhos, diante dela, se bem que corporalmente eu estivesse sentada à mesa, ao fogo ou à grade. E ela, ao invés, queria me erguer com benevolência; mas eu não queria porque parecia-me que seu aspecto venerável merecesse que eu estivesse ajoelhada à sua frente.
De seus olhos parecia que emanava raios, tão belos eram; enfim era toda belíssima. Fazia-me grande festa e alegria, mas eu não sabia por qual razão nem porque fosse benigna e graciosa comigo.
Aparentava cerca de quarenta anos.
Esta visão durou talvez mais de duas semanas, mas eu quero dizer quinze dias para dizer a coisa certa. Depois desapareceu. Não a vi nunca mais, nem antes nem depois.
Durante aqueles dias, nunca mais eu tive a mínima dúvida que aquela fosse Santa Clara, nossa gloriosa mãe e guia, porque nunca mais eu tive o desejo de vê-la neste mundo. Certamente, no outro sim.
Mas escuta, meu Pai, que coisa pensava esta tua ovelhinha. Eu sou sempre contra que sejam recebidas aqui irmãs de outros mosteiros.
Bem, eu pensava que aquela fosse uma irmã de algum outro mosteiro que Deus quisesse fazer entrar no nosso; mostrava-a a mim, a fim de que não lhe fosse contrária, mas favorável.
Dizia no meu coração: "Quem poderá ser triste ou não estar contente quando estiver conosco? Consolar-nos-ás todas, Sol que nos olhas!"
Depois que desapareceu da minha mente, permaneceu em mim tanto amor e devoção para com a gloriosa mãe Santa Clara, que de nenhum modo posso duvidar que aquela irmã não fosse ela. Se pelo sangue de Cristo for ao Paraíso, eu a reconhecerei entre milhares e milhares e, abraçando-a, lhe direi: "Minha dulcíssima Mãe, eras tu aquela que no mundo me visitaste!"
Ai de mim! Que fui e que sou? Por isso torno a dizer: "Ó! Vós todos que passais pelo caminho do divino amor, parai e vede se há dor igual a minha".
"Maravilhosos são os teus ensinamentos, Senhor Jesus, e muito agradáveis para a alma que te procura. "
Sob o firmamento não há testemunhas mais claras e verdadeiras que aquelas de Deus. E sei que tu, Pai, que o procuras sinceramente, o crês.
Por isso não calarei teu louvor, ó Senhor Deus, ao meu velhinho devoto Padre[21], mas a narrarei para a tua glória e minha confusão; não a incrédulos e insensatos, mas a ti, Pai, porque sei que quem prova, crê.
Peço e suplico a vós, espíritos angélicos, dos quais devo falar, algo, que me assistais para que, com toda a verdade narre a benignidade e a cortesia de vós para com minha ingrata alma.
Poucos dias depois que a gloriosa mãe Santa Clara desapareceu de minha alma, vieram dois anjos vestidos com aquelas vestes candidíssimas das quais vi revestido Cristo bendito, com as asas todas de ouro; um deles me tomou a alma do lado direito, o outro do lado esquerdo. Erguendo-me para o alto, colocaram-me aos dulcíssimos pés crucificados do Filho de Deus encarnado. E assim me tiveram em espírito por mais de dois meses quase contínuos, tanto que me parecia que caminhava, falava e fazia aquilo que queria, sem a alma.
A minha alma estava lá onde a tinham os dois anjos, os quais nunca se afastaram. Eu não me lembro de que antes de então tivesse tido o desejo de estar sempre aos pés de Cristo.
Passado este tempo, deixaram-me a alma no corpo como antes, mas ficou-me tanto amor e devoção que nunca quis raciocinar e falar de outra coisa que dos serafins; sempre lhes pedia com doce afeto que um deles voasse junto de mim como havia feito ao profeta Isaías. E por demais, havendo pedido e não vindo, uma manhã antes da celebração da Hora prima[22] voltei-me à doce Mãe de Deus e com santa impaciência lhe disse: "Ó dulcíssima Mãe, ó benigníssima Rainha, eu sei que és imperatriz dos anjos e todos te obedecem como a sua senhora e patrona, te peço, doce senhora minha, que mande a um serafim que voe a mim como fez ao profeta Isaías. Tu sabes, senhora minha, quanto o desejo."
E ela, sem muito ser pedido, me promete de mandar-me um. Estava tão contente por esta promessa que me rejubilava no coração.
Passados alguns dias, uma noite após matutino, coloquei-me em oração. Refletia sobre o grande amor que Deus traz à criatura. E se bem que não fosse esta a minha única meditação, deixei andar a mente onde Deus a atraía. Mas logo Deus me atraiu a coisas altas, divinas, sublimes. Entrei em um mar tão alto e profundo, que por mais de duas vezes teria querido voltar atrás se houvesse podido. Não eram palavras nem visões, mas um lume que não se pode explicar com palavras: porém para tua consolação, Pai diletíssimo, direi alguma coisinha, antes três coisas: as outras não se podem dizer mas somente considerar por graça de Deus.
A primeira foi esta: se um outro deus fosse em cada coisa semelhante a este nosso Deus benigníssimo e santíssimo e fizesse todas as coisas que o nosso Deus fez por nosso amor, ainda permaneceriam dois pontos em débito que nunca poderíamos pagar: o primeiro é: o ato de amor, já que o nosso Deus nos amou por primeiro. Este sempre permanece um débito que não se pode pagar. O segundo é este: um outro deus sofreria por um deus como ele, em cada coisa igual a sua infinidade; mas o nosso Deus sofreu por nós, vilíssimos vermes cheios de pecados. Este é o segundo ponto que permanece em débito e não se pode pagar.
A segunda coisa: todo o nosso amor a Deus é ódio péssimo, todo o nosso louvor é um não louvor; e todo o nosso agradecimento, em res- peito àquilo que é devido a Deus é blasfemar.
A terceira coisa: vi com certeza e claramente que a gloriosa Mãe de Deus, junto com todos os anjos e os homens não são suficientes para agradecer à divina caridade pela criação da mais pequena flor, criada por Deus para nosso prazer e utilidade, considerando a sua infinita grandeza e excelência e a nossa imensa nulidade e baixeza.
Pensa, meu Pai, em que abismo me encontrei quando passei a considerar quantos benefícios e graças recebi de Deus. Bem mais que flores e ervas!
Então perdi toda a confiança em mim mesma e em toda a minha vontade de bem. Então refutei com todo o coração as divinas graças para não juntar débito a débito, ingratidão a ingratidão; a tal ponto que, se Cristo aparecesse para mim, fecharia os olhos para não vê-lo.
Então, com a cabeça inclinada até o chão, supliquei graça à divina Majestade, que me colocasse perpétuamente, sem interrupção, aos clementíssimos pés de seu Filho Crucificado, e que todo aquele tempo me fosse imputado como blasfêmia a Deus e como fornicação, porque estava certa que teria feito estes e muitos outros males, se a sua piedosa mão não me houvesse tomado. E que após a minha morte me mandasse aonde a Ele mais fosse agradável; talvez mesmo no inferno teria ficado contentíssima. Só a sua Vontade queria que se cumprisse em mim e por mim. Só esta sua Vontade queria que fosse toda a minha beatitude, o meu prêmio, a minha glória. Vi o entranhado amor sem medida que Deus dá às criaturas.
Quando voltei a mim, não podia parar de repetir": Ó loucura! Ó loucura! Nenhum vocábulo me parecia mais verdadeiro e conveniente a tanto amor.
Então me foram concedidos aqueles graciosíssimos pés; por cinco anos os possuí com tanta contínua memória, com tanta paz e alegria que se o falasse a ti, ó meu Pai, talvez não o acreditasses.
Agora deles sou privada, e feita viúva; agora sou despojada de tão rica veste; agora sou despojada do tesouro do meu coração.
Ó pés crucificados, ó única esperança da minha alma, como é possível viver sem vós, que éreis a vida, o coração, o tesouro da minha alma?
Ó meu Jesus, ao menos por uma hora concede-os a mim e depois manda-me ao inferno; ficarei contente. Naquela hora chorarei tanto, abraçarei e beijarei tanto aquelas santíssimas chagas, que o meu coração se despedaçará e consumirá neste mísero corpo.
Ó pés traspassados, pelos quais me agradava ver todos os pés, tocar, abraçar e beijar.
Ó pés dulcíssimos, quão amargos se me tornaram os doces e devotos prantos plenos de amor e devoção!
Ó pés piedosos do Crucificado, não acreditaria nunca que me fosse proibido ou tolhido de poder vos abraçar, porque não foi negado às adúlteras e meretrizes.
Ai de mim e mil vezes ai de mim! Bem mais desventurada, mais infeliz do que todas as outras pecadoras.
Ó pés clementíssimos! Se não fosse para não dar tédio a quem me ouve, toda esta sexta-feira despenderia em prantos e suspiros.
E tu, meu Pai diletíssimo, disto não te maravilhes, porque, como o ouro sobre todos os outros metais resplende e reluz, assim esta pena e dor sobre todas as outras me crucifica e atormenta.
Creio que seja este o motivo: possuí esta graça por mais tempo que as outras.
"E por isso a cítara da minha esperança entoou um canto triste."
Estes santos, suavíssimos pés me fizeram perder o fio do discurso, mas com a graça de Deus seguirei e terminarei a tela, que somente por sua inspiração comecei a urdir e tecer.
Passado o lume[23] do qual falei, permaneceu na minha alma um fogo abrasador. Arrisco dizer com suma verdade que a minha alma foi assim inflamada e queimada deste ardente fogo espiritual, como o fogo material devora e queima todas as coisas materiais.
Tal fogo, me parece — se bem recordo, — me durou mais de três meses.
Era um vivo desejo de sair do cárcere deste corpo para estar com Cristo.
Este desejo era, sem ordem e medida, tanto e tanto, que talvez não me creias, mas Deus sabe que digo a verdade.
Este ardor era tão ardente e inflamado que o corpo me pesava; invadiam-me penas do inferno. Antes, pareciam-me refrigério as penas do inferno em comparação da pena que eu sentia.
Nunca mais quero senti-las, exceto quando deverei morrer; porque em confronto a morte seria jamais morte, mas ir às núpcias com cantos e danças.
Então podia com sincero coração dizer junto com o Apóstolo: "Desejo ardentemente morrer e reencontrar-me com Cristo". E como o profeta Davi: "Liberta a minha alma do cárcere para que eu possa cantar hinos ao teu nome. Os bons esperam para que eu tenha minha recompensa". Então claramente conheci que um dos serafins voou na minha alma, segundo a promessa que me havia feito a sua e minha dulcíssima Senhora, a doce Mãe de Deus.
Violentamente aflita na alma e no corpo por este inflamado desejo, chorava amaríssimos prantos, soluços e suspiros enquanto pedia a Deus que me tirasse da miséria do corpo e do mundo.
Um dia, estando em oração, chorando forte e orando a Deus por isso, me pareceu que Cristo bendito me mostrasse grande compaixão e estreitasse com o braço a minha alma ao seu sacratíssimo peito, dizendo-me muitas vezes: "Não chores tanto! "E com a outra mão enxugava-me os olhos da alma. Pois, embora vertesse muitas lágrimas, este pranto não era do corpo, mas da alma.
E nem mesmo as dulcíssimas palavras de Cristo bendito me impediam de chorar; antes toda me liqüefazia e com insistência lhe pedia que me libertasse desse cárcere corporal.
Enfim, Ele me disse: "Não posso, não posso ainda". E mostrando-me as suas potentíssimas mãos de muitos modos ligadas e estreitas, disse: "Estas são as orações que irmãs e frades elevam a Deus por ti a fim de que tu não morras; tem paciência!"
Aquilo que direi agora, não me recordo se aconteceu antes ou depois daquilo que narrei acima.
Uma vez, sentindo tanto fogo espiritual de não poder suportá-lo, deixei-me como uma insensata a lamentar-me dos serafins; quase arrependida de ter pedido a eles que voassem junto de mim. Disse a eles: "Ó espíritos dulcíssimos, eu pedi tanto que um de vós voasse a mim porque acreditava que possuir-vos, tão vizinhos e próximos a Deus, fosse o Paraíso.
Como é, portanto, que tendo-vos vizinhos eu experimento as penas do inferno?
Não compreendo como pode ser um prazer a vossa vizinhança a Deus".
Então, muito doce e familiarmente falavam comigo, como a uma querida amiga, e diziam:
"Aquilo que para ti é de pena, para nós é desejável. Tu tens o fogo do ardente desejo, mas vivendo no corpo, falta a ti a presença e a abundância daquele que para nós é presente, por isto tu sentes grande pena. Mas nós temos o ardente desejo unido à presença real daquele que desejamos. O nosso grande querer é em proporção ao incontível desejo." Declararam-me além disso que eles eram tão íntimos a Deus, que Deus nunca estava nem podia estar sem eles, nem eles sem Deus. Declararam que eles, os serafins, eram tão unidos com os querubins e os querubins com eles que nunca podiam visitar uma alma um sem o outro.
Disseram-me:
"É verdade que em algumas almas tem maior influência os querubins e em outras os serafins, mas na tua alma temos o domínio nós, os serafins. Por isso tu tens mais fogo que lume. " Era a verdade!
Embora o lume, do qual falava acima, fosse grande e incompreensível, todavia havia três vezes mais fogo que lume.
Agora vejo claramente que os dois anjos, que me haviam erguido aos pés do Crucificado, eram um querubim e um serafim.
Este é aquele fogo com o qual dizia ter sido batizada e purificada mediante a sincera confissão geral, que fiz ao meu Pai glorioso e santo, Frei Pedro de Mogliano.
"O sacramento Eucarístico é verdadeiramente o Pão dos Anjos. "
Digo isto porque após a visita dos "dois anjos" permaneceu em mim tanto apetite e fome do sacramento Eucarístico, que não podia saciar-me de comungar.
Por dois anos quase contínuos comunguei cada domingo. Mas o meu apetite e fome teria sido, podendo, comungar todo dia. E quando pensava de estar mais de oito dias, me parecia desfalecer, tanto me era de sofrimento.
Assim por três anos, antes que começasse minha tribulação, andava celebrando a felicidade de minha paz angélica. Então todos os caminhos de Sião, isto é, do Paraíso, eram livres para mim, pacíficos, desimpedidos e por eles corria sem impedimentos, por santo desejo e devota oração.
Então verdadeiramente, meu Pai, tinha - ou parecia-me ter - o coração mais angélico que humano, mais celeste que terrestre.
Não creio que tenha tido nunca outra presunção a não ser esta: quem me houvesse dito então: "Tu chegarás ao ponto em que estou agora", nunca teria acreditado ser possível. Esta presunção e vaidade, é verdade, tive no meu coração. Não conheço outras.
Então fiz este santo propósito no meu coração: por graça e dom do Espírito Santo, quis e quero que todos os meus dias sejam uma única Sexta-feira Santa, no qual chorar sempre a amaríssima Paixão de Cristo, a fim de que quando morrer me apareça ressuscitado e glorioso.
Desde então não desejei solenizar mais nem Páscoa e nem Natal, nem nenhuma outra solenidade.
Não havia mais nada a acrescentar à Sexta-feira Santa.
No tempo das festas solenes da Igreja, a minha mente pensava nelas quase com esforço, pois era atraída irresistivelmente a meditar a Paixão de Cristo, segundo o propósito que havia feito: que toda a minha vida fosse uma Sexta-feira Santa.
Assim há correspondência entre as últimas e as primeiras coisas; isto é: na Sexta-feira Santa iniciou a minha salvação pela tua santa pregação e, vivendo em perene Sexta-feira Santa, fecho a narração da minha vida espiritual, endereçando-a a ti, Pai, que foi o seu princípio.
Atravessando o deserto desse mundo, "cheia de delícias, estou abraçada ao meu dileto apaixonado, separada dele com o corpo, mas não com a alma"(Ct).
Antes do tempo de minha infelicidade e ruína espiritual, "pois Deus conhece todas as coisas passadas e futuras", predisse-a a mim do seguinte modo, mesmo se eu, dura, não a compreendi: Um dia[24], mal coloquei-me em oração, logo me foi dito: "Vai e escreve aquelas dores mentais da Paixão que tu sabes. "Eu me desculpei, dizendo: "Meu Senhor, não sei nem mesmo como começar porque não desejo dizer de nenhum modo que estas coisas são minhas. "
Foi-me dito:
"Comece assim: houve uma alma muito desejosa de nutrir-se... etc.". E foram-me ditadas duas páginas.
Eu logo me levantei e obedeci a tal comando, tanto me eram abundantes as palavras, que não devia mais pensar naquilo que devia dizer.
Assim aconteceu então: eu fiz não pouco esforço para colocar-me a escrever, mas depois as palavras fluíram abundantemente, sem precisar pensar.
Ó, penosa notícia foi aquela ordem para mim. Quase como se Jesus quisesse dizer-me: "Eu vejo que o vaso de tua alma é demais poluído. Assim emana o bálsamo das minhas dores mentais, enfunde-o em outros, porque a ti, infecta, não pode mais alegrar. "
Eis porque escrevi. Mas tenho grande medo que aquilo eu faço agora seja bem pior, que Deus diga: "Lança fora da tua boca todos os meus tesouros, porque Eu mesmo quero rejeitar-te de mim. "
Ó meu Deus, livra-me de sentença tão amarga!
Este fato ocorreu em agosto(1488), quando já havia começado minha cruel batalha; mas eu ignorava as astúcias de Satanás; por causa da grande paz da minha alma não previa alguma guerra. Antes, imaginava cada coisa segura e pacífica.
Durante a oitava de São Francisco[25] fui tão golpeada e batida pelos inimigos, que me dei conta muito bem de que eles não eram amigos, nem as suas eram boas inspirações. Mas vi e experimentei que eram inimigos mortais da minha alma.
Então Deus me abre os olhos por um pouco e vi a mim mesma em meio ao campo da terrível luta, cercada por inimigos potentes. Vi que somente pela força divina seria arrancada de suas mãos. De outro modo seria impossível.
Fui ferida por uma dor mortal; não sabendo que outra coisa fazer, durante a oitava de São Francisco jejuei a pão e água, pedindo a Deus e a São Francisco que me ajudassem.
À noite, em sonho, me foi mostrada toda a tribulação que estava para sobrevir. Aqui termina a minha alegria. "Aqui dependuramos as nossas cítaras"(Sl. 136). Aqui terminou todo o meu bem e começou todo meu mal.
Então desabou todo o abismo da diabólica maldade que esteve fechado por dez anos[26], e saiu dele o dragão venenoso, as mandíbulas abertas, rugindo contra mim com tanto ímpeto que parecia querer me engolir viva.
Por sua maligna vontade tentou devorar-me e engolir-me; e o teria feito se a potente mão de Deus, a qual não me abandona "quem espera nele" não me houvesse retirado ilesa de suas mandíbulas rugentes, somente por sua bondade, não por minha virtude nem prudência. Tu, meu Pai, conhece muito bem o que digo.
Então fui espoliada de toda minha rica e preciosa veste, então me foram arrancados os olhos, tosados e raspados os cabelos de toda a minha fortaleza espiritual[27], depois me "bateram , feriram, indo embora somente quando me deixaram semiviva. "(Lc 10, 10).
Nos dois anos (1488-1490), durante os quais fui tão atribulada, não tive mais nenhum conforto humano, salvo as três vezes em que pude falar com meu santo e glorioso Pai, Frei Pedro de Mogliano.
Quando ele foi eleito vigário[28] me alegrei muito dizendo: poderei beber abundantemente a sua palavra. O demônio faça aquilo que quiser; agora serei ajudada com sabedoria.
Meu santo Pai, tu vieste a Camerino, mas a tua dileta filha não pôde dizer-te uma palavra. Logo a morte te tolheu a mim.
Esta morte me fez sofrer ao ponto que, quase desesperada, me fez sair de mim mesma. Na minha desolação, propus firmemente no meu coração de não colocar jamais a minha confiança em alguém, se Deus não me houvesse mostrado claramente em quem.
Frei Pedro, meu Pai, embora tu não quiseste deixar-me órfã, porque assim via necessário à minha salvação. Apenas morto, tolheste todo o poder aos meus inimigos, reconduzindo-me "sobre a via da verdade".
Depois, Deus me inspirou, por intercessão do Beato Pedro, a colocar corajosamente toda a minha confiança em ti, Padre Domenico, diletíssimo, e de referir-te por ordem a minha tribulação. Isto era necessário para a minha salvação, como tu o sabes.
Tal inspiração era contra a minha vontade e ninguém , fora Deus, sabe o quanto me foi amarga.
Depois que te expus o estado de minha alma, digo-o não por adulação, mas com suma verdade, fiquei tão satisfeita e contente que não teria querido ter resposta à minha confiança em outra pessoa fora de ti , meu Pai.
Esperava poder repousar e ter algum alívio espiritual na batalha mortal que durava já dois anos.
Mas, ai de mim! Meu Pai, não foi verdade! Antes, após a tua partida fiquei mais aflita do que nunca.
Rebelava-me fortemente contra Deus e, enquanto me lamentava, acusava Ele e à Sagrada Escritura de mentira, "que é a maior iniqüidade" e outras coisas das quais nem ouso falar.
Creio, devotíssimo Pai, que quando escutares o resto, parecer-te-á que esta minha pobre alma estivesse entre as penas do inferno após a tua partida.
E verdadeiramente, me pareceu ser assim.
Mas sobretudo me despedaçou o coração o fa to de não haver podido falar com ninguém, como tu sabes, nem receber um mínimo conforto em tanta necessidade.
Ó meu Pai, onde estiveste? Ó meu Pai, durante todo este tempo convulsionei-me, não pude dizer-te uma palavra, nem mesmo agora o posso, nem tu a mim. Minha desgraça e desventura! Quão amargos me foram aqueles dias. Por isso, através de toda esta minha dolorosa narração, sempre semeei estes meus lamentos: "Ó vós todos que passais pelo caminho do divino amor, parai e vede se há uma dor igual a minha".
Ó meu Pai, somente a ti falo: "considera e vê se há uma dor igual ou semelhante à minha". E se Deus me desse uma voz tão potente que todo o mundo me ouvisse, eu gritaria: "Ó vós todos, servos de Deus, os quais passais pelo caminho do seu divino amor, aprendei às minhas custas e ficai de cabeça baixa, porque se pode falar a Deus e com Deus, à Virgem Maria e aos anjos e aos santos e todavia se pode miseravelmente cair e arruinar-se em muitos pecados mortais[29], como eu fiz".
Tomai o exemplo desta alma desventurada e infelicíssima, "à qual havia chegado em pleno mar do divino amor e da doçura espiritual, mas uma violenta tempestade a submergiu na profundidade do abismo e do inferno." (Jr 1, 12).
É sentença do Eclesiástico que todas as águas que saem do mar ao mar retornam. Assim foi justo e conveniente que a minha salvação, que por graça de Deus teve início e origem de ti, meu Pai, por desígnio divino, após tanto tempo, retornasse a ti "para fluir de novo"(Eclo 1, 7).
"Tu plantastes, outros Pais regaram e Deus fez crescer até agora". A esperteza de Satanás não arrancou a planta e nela há ainda, isto é, a vida interior, a generosidade e a inclinação da vontade ao bem. Deus me guardou a tal ponto de conservar-me intacta, pura e imaculada no corpo, assim que, por graça Sua e não por minha capacidade, eu me conservei ilibada e posso dizer junto com a Mãe de Deus: "Eu não conheço homem". Por isso, Pai caríssimo, agradeça junto comigo ao criador, que se dignou guardar-me como amiga e esposa[30].
Acredito sem dúvida, meu Pai, que este escrito, coisa nova que nunca fiz, coisa nova para a minha alma, significará ou um grande bem ou um grande mal.
Mas eu, com todo o meu coração, peço a Deus e à sua gloriosa Mãe, que me conceda a graça de que este escrito seja mesmo o meu testamento.
Se assim Deus quiser, faço verdadeiramente daquilo que eu possuo: a alma e o corpo; pois por amor, desejo e afeição outra coisa certamente não possuo neste mundo.
Deixo o corpo à terra; Deus, por graça, me conceda que se dissolva logo em pó, segundo sua vil matéria.
Deixo a alma nos teus caridosos braços, meu diletíssimo Pai. Tu és, após Deus, a única esperança da minha salvação.
Se eu, pelo precioso sangue de Cristo e as tuas orações, encontrar lugar de paz e misericórdia não me esquecerei de ti.
Saúdo-te, caríssimo Pai, em Jesus meu Senhor. Recorda-te de orar por tua filha.
Irmã Camila
Graças infinitas rendo a ti, meu dulcíssimo Senhor, que como me deste a graça de narrar a tua verdade com toda a simplicidade, assim te peço que tu me dês tanta graça que esta narração seja simplesmente creditada ao teu louvor, e minha confusão e vergonha aqui em baixo.
Narrei por obediência a Deus as coisas da minha vida espiritual, movida — ao menos me parece — por divina inspiração. Decidi no meu ânimo dizer-te de viva voz, mas fui obrigada a escrevê-las. Pensava entretanto de entregar-te eu mesma com minhas mãos, devo ao invés mandá-las assim, não sei porquê nem para que fim.
Deus queira que eu não esteja enganada e que tenha interpretado corretamente.
EM LOUVOR DE CRISTO.
AMÉM.
[1] Pe. Domenico de Leonessa
[2] A sua vida espiritual iniciou na sexta-feira santa de 1466 ou 1468; o presente é 1491.
[3] Dele não se tem outras notícias
[4] Júlio César Varani, príncipe de Camerino
[5]1476/1479
[6] 1479
[7] 24 de março de 1479
[8] Pe. Francisco de Urbino
[9] 9-10 de abril de 1479
[10] Lamentações de Jr 1, 2; é a restauração de Camila.
[11] "Mal sofrer": sofrimento sem glória, na vergonha, na humilhação.
[12] Gregório Albanese, ex-soldado de Francisco Sforza, acolhido na Ordem franciscana em 1445 por S. Tiago das Marcas, em Camerino.
[13] Cântico dos Cânticos
[14] Evocação de Exôdo 33, 23
[15] Entre 1479 e 1481
[16] O pai, Júlio César
[17] Provincial.
[18] O diário de Lili notou que 4 de janeiro de 1484 — dia da entrada em Camerino — era domingo e nevava for temente.
[19] Completas se rezava perto das dezessete horas.
[20] Data incerta; o ano de 1484, talvez de junho a setembro.
[21] Pe. Domenico de Leonissa
[22] Celebração de uma Hora do Ofício Divino, hoje suprimida.
[23] Ver capítulo XV.
[24] 1488-Origem do tratado: "As dores mentais".
[25] 11 de outubro de 1488
[26] 1477-1488
[27] Tomado do episódio de Sansão, narrado no livro dos Juízes.
[28] 1490: vigário provincial
[29] Exageros dos santos!
[30] Várias reminiscências do Antigo e Novo Testamento.
[31] Esta data concorda com a maioria dos códices.
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