29 de abr. de 2010

Biografia de Camila Batista Varani


Irmã Chiara Giovanna Cremaschi, Clarissa

Tradução e digitação: Irmã Maria Renata, osc
Revisão: Irmã Sandra Maria, osc


Do original italiano:
Camilla Battista da Varani
Autobiografia
Editrice Àncora Milano, Milano 1983


biografia de camila batista varani
as “raízes” de CAMILA

Entre os contrastes daquele século vivíssimo e desconcertante que foi o século XV, sobretudo na segunda metade, aparece diante de nosso olhar uma figura excepcional de mulher e de Irmã Pobre, que viveu profundamente em si os dramas mais dolorosos de seu tempo. Para compreendê-la melhor nas suas características humanas e espirituais, não podemos deixar de traçar brevemente a fisionomia de sua terra e de sua gente.

Os acontecimentos dos senhores de Camerino são muito entrelaçados com a própria vida e raízes da personalidade de Camila Varani para que possamos nos permitir  passá-los em silêncio. Nos encontramos diante de um dos períodos mais turbulentos  da história da Itália, mas não podemos deixar de olhar esta realidade, pois a santidade germina também entre a debilidade e as mesquinhas violências dos seres humanos.

O século XV, permeado pelo fermento da renovação religiosa, é infelizmente caracterizado por tantas pequenas guerras e guerrilhas pelo domínio sobre os vários senhorios, com uma sucessão de mortes violentas que ensangüentaram toda a Itália, sobretudo as famílias nobres.

Os verdadeiros dominadores deste século são os capitães de aventura, que possuem no sangue a paixão da guerra e correm a defender os vários grandes senhores por sua vez chefes por origem e que assim permanecem mesmo depois de haver conquistado o senhorio. A uma destas estirpes guerreiras pertencem também os Varani de Camerino.

Dos parentes de Clara se diz que eram “homens de armas”, cavaleiros no sentido medieval do termo. O mesmo se pode dizer dos parentes de Camila, mas com um acento um pouco diferente, porque a vocação do chefe renascentista não traz consigo ideais nobres como aqueles do século XIII. Nestes aventureiros há sempre o desejo de domínio e riquezas. Dos Varani, de fato, pode-se dizer que são capazes homens de negócio, hábeis em entrelaçar comércio e indústria e em aumentar as próprias posses.

Nas décadas que precedem o nascimento de Camila, uma sublevação popular, único terrível meio para a cólera dos explorados e oprimidos, alimentada freqüentemente por quem tem somente interesses de domínio ou de vingança, marcou profundamente sua família, dizimada por uma sanguinolenta matança em frente à Catedral. Escaparam então ao massacre apenas três crianças: o pequeno Júlio César, de um ano e meio, que será depois o pai de Camila, e seus dois priminhos, Constância e Rodolfo, com sua mãe, Elizabete Malatesta.

Queremos parar um momento sobre esta bela figura de mulher que se destaca em meio a um horizonte turbulento. A jovem filha dos senhores de Pésaro, abatida pela dor, mas não vencida, refugia-se junto aos pais com as três crianças e dali se prepara para reconquistar o senhorio para o filho e o sobrinho.

É uma mulher forte, que não se deixa submergir pelas provas da vida, mas é capaz de vivê-las na profundidade do seu coração fortificado por uma fé robusta, sem perder o equilíbrio psíquico e espiritual. Ama profundamente os filhos e o pequeno sobrinho que ficou só no mundo, e os educa com afeto e fortaleza, preocupada em dar a eles uma infância serena, que não se torne traumática pela tragédia familiar. É dotada de sagacidade e prudência e possui em si o senso dos acontecimentos e das circunstâncias que lhe consentirá aproveitar-se do momento favorável e das pessoas certas para obter o retorno a Camerino.

Cerca de dez anos após a fuga, terá êxito em seu intento e governará com prudência e sagacidade pelo filho e pelo sobrinho ainda crianças.

Uma imensa dor a perturba novamente pela  morte da filha Constância, a bela e amada esposa do senhor de Pésaro, que deixa um menino pequeníssimo. Esta última grande prova separa Elizabete definitivamente de todas as coisas da terra e a faz experimentar como há um único Amor que não diminui jamais, um amor do qual nunca duvidou, não obstante tudo, e que hoje é a única realidade capaz de preencher sua vida. Depois de haver experimentado tudo o que a vida dá e pede a uma mulher de sua condição, deixa o senhorio nas mãos do filho e do sobrinho, e bate a porta do mosteiro de Clarissas de Urbino.

Depois de algum tempo, é ainda arrancada da paz do claustro, que é a paz de Deus, para reassumir a regência por causa de uma situação difícil, com uma tentativa de expulsar os dois jovens Varani de Camerino. Não devemos nos maravilhar desta excepcional saída da clausura, mas vê-la na mentalidade de um século no qual a razão de estado prevalece sobre tudo e envolve também quem deveria estar de fora, como ocorrerá também com nossa santa.

Com sua sagacidade e seu equilíbrio, Elizabete dá novamente paz à terra pela qual tanto lutou e consolida o senhorio nas mãos do filho e do sobrinho. Cumprida a sua missão, retorna para sempre ao Mosteiro de Urbino, onde toda a sua experiência de mulher, mãe, viúva e regente iluminada, se esconde na humilde, quotidiana, secreta vida de uma Irmã Pobre de Santa Clara, que continuará a seguir aos seus, somente com o potente meio de uma oração incessante.

Em 1449, Rodolfo e Júlio César, que não tinham ainda 20 anos, tomam em mãos as rédeas do senhorio. Os dois jovens trazem em si as qualidades e os defeitos de sua estirpe: uma vontade forte, acompanhada daquele ardor na paixão e na ambição, que se traduz às vezes em ímpetos de generosidade e a vocação, se assim se pode dizer, de chefe.

Em Rodolfo, esta atitude militar é tão predominante que o leva continuamente para longe de Camerino. Em Júlio César, ao invés, é acompanhada do desejo igualmente forte do homem de estado que governa na ordem e na paz o seu território e de exaltar-se com a magnificência das construções e a presença de artistas no seu palácio, em pleno estilo renascentista.

Como a maioria dos senhores do seu tempo, ele aceita a religião no seu aspecto externo e visível de uma certa prática religiosa e se considera crente, mas no comportamento moral não se preocupa com as exigências da vida cristã.

O matrimônio é, pois, um negócio de estado, um problema de aliança política e ele, em 1451, com cerca de vinte anos, desposa Giovana Malatesta, de Rímini, que é ainda uma menina e que no momento não pode ter um comportamento de mulher. Júlio César sente-se plenamente livre e parece que a jovem esposa, educada segundo a mentalidade do seu tempo, não faça disso um drama.

Os primeiros anos

Entre uma expedição militar e outra, lhe nascem diversos filhos, entre os quais também Camila, que vem à luz em Camerino no dia 9 de abril de 1458 e é filha de uma nobre da cidade.

Rapidamente, porém, é conduzida ao palácio dos Varani, reconhecida como filha de Júlio César e como tal amada de modo particular. Também Giovana, que ainda não teve a alegria da maternidade, acolhe com terno afeto materno a pequena, e a ligação entre elas é uma das realidades mais belas da infância e juventude de Camila, que não ressentiu-se inteiramente das circunstancias ilegais de seu nascimento e pôde crescer e expandir-se livremente.

É uma menina vivaz, inteligente, que ama o jogo, sua bela casa e a companhia da jovem mãe e das priminhas, filhas de Rodolfo, que desposou Camila D’Este, de Ferrara.
A sua é uma infância sem trauma, em que tudo lhe sorri e lhe dá alegria de viver. Podemos dizer que teve as condições fundamentais para o desenvolvimento harmônico e equilibrado de uma pessoa. O único episódio doloroso é a morte do tio Rodolfo, ocorrida em 1464, quando Camila tinha seis anos. O acontecimento porém não tem uma forte incidência sobre a menina, que talvez nem mesmo conheça este chefe, que nos últimos tempos viveu quase sempre em Milão, e o colhe somente de reflexo, vendo a dor de seus pequenos primos.

A sua é uma vida descuidada e serena, na qual não há lugar para uma verdadeira educação na fé, mesmo se lhe são dados aqueles conhecimentos religiosos que não podem faltar a uma nobre mulher do seu tempo.

Uma lágrima por amor

Quando Camila tem oito ou dez anos, aconteceu um fato que considerará mais tarde o início de sua vida espiritual e que com o passar dos anos permanece bem vivo na memória, como as realidades que assinalaram profundamente nosso caminho.

È Sexta-feira Santa e um santo frade franciscano, Domênico de Leonessa, prega a Quaresma na Catedral de Camerino. Por um daqueles impulsos inexplicáveis que às vezes ocorre nas crianças, e que nascem de sentimentos profundos, mas não ainda claramente formulados, nem mesmo pelos protagonistas, a pequena Varani quer “espontaneamente”, como ela mesma sublinhará, ir escutar a pregação.

Camila não está somente atenta às palavras do Padre, mas se identifica de tal modo à narrativa da Paixão, a ponto de inquietar-se com este Jesus que “cala”, quase a esconder de si mesma uma “pena que sentia”. O instinto batalhador e ardente dos Varani vibra nesta menina que, no fim, acolhe como dirigida pessoalmente a ela, a exortação do pregador de recordar-se da Paixão do Senhor ao menos na sexta-feira e de chorar pelo menos uma lagrimazinha só. De tal modo se imprime no seu coração e em sua memória que nunca mais poderá esquecer.

Algum tempo depois, faz voto a Deus de derramar cada sexta-feira ao menos uma lágrima por amor a Paixão de Jesus Cristo. Exteriormente, não se nota mudança em sua vida; é sempre a mesma jovenzinha descuidada que ama as brincadeiras e as festas. À sexta-feira, porém, não pode deitar-se se não derramou aquela lágrima. O seu empenho, por enquanto, termina aqui, porque, apenas obteve aquilo que se propôs, corre aos prazeres habituais, sem deixar-se tomar inteiramente pela comoção.

Em alguma sexta-feira, acontece mesmo de não conseguir, e de resto não há do que ficar pasmo, porque o clima geral é totalmente outro, que favorável a estes pensamentos, e então sente uma certa pena por toda a semana. Inconscientemente, começa a agir nela o amor pela Paixão.

É somente uma pequena semente lançada num coração generoso e numa vontade forte, que assinala o início de um caminho progressivo, que conhecerá todas as lutas de uma natureza ardente e vibrante de vida, capaz de entregar-se somente diante da imensa e indizível força do amor que Deus manifestou, doando-nos seu Filho, aquele amor que será o centro de toda  a sua vida.

O prazer e a cruz

por um certo tempo, Camila contenta-se com o simples gesto de compaixão, com a pequena condivisão dos sofrimentos de Cristo que se realiza em seu voto de derramar uma lágrima, depois encontra um livro de meditação sobre a Paixão. Com sua linguagem sutil, anota que “parecia que foi escrito propositadamente para uma pessoa que não soubesse meditar. É uma coisa muito longa”, mas a jovem decide lê-la inteira, seguidamente, estando ajoelhada diante do crucifixo, cada sexta-feira.

Com sua vontade forte, não retrocede no propósito, mesmo quando pode somente iniciar tarde da noite, muito cansada por causa dos habituais divertimentos que continua a amar. A constante leitura da Paixão faz penetrar profundamente no coração e na mente da jovem, que a um certo ponto suspende este hábito e, tornando-se uma pessoa que sabe meditar, reza interiormente, escutando as inspirações do Senhor. Assim, o amor ao Crucificado se enraíza sempre mais profundamente em seu  ânimo.

Camila é então uma mulher cheia de vida e de graça feminina, que conhece todos os atrativos da dança e da música, como também da companhia de seus coetâneos. Com a sua idade, muitas jovens já são esposas de príncipes e a Varani, então com dezoito anos, não tinha aspirações diferentes.

Porém, cresce nela o pranto sobre a Paixão, que não pode esconder, porque na corte as donzelas estão sempre juntas e não há lugares aptos para a oração. Indômita filha de chefes, Camila não dá explicações e não descuida de seu propósito, não obstante o falatório de suas companheiras, que atribuíam a bem outras razões o seu pranto: “voltava as costas a elas, e voltando o coração a Deus, aplicava-me ao meu negócio”, comenta ela mesma, manifestando uma de suas características mais destacadas, que é aquela de levar até o fim, até as extremas conseqüências, as suas decisões.
O amor ao Crucificado a impulsiona também a jejuar na sexta-feira a pão e água e a levantar-se seguidamente no coração da noite para rezar no silêncio, entre as companheiras adormecidas. O desejo de Cristo cresce dentro dela e a oração lhe dá grande paz, mas vive ainda na contradição pela busca do prazer e pelo gosto que experimenta de viver em seu ambiente, que não quer deixar a nenhum custo.

Tempo de luta...

Continua desse modo por três anos, até que, em seguida à pregação do franciscano Pe. Francisco de Urbino, mas sobretudo porque, a quem roga com sinceridade de coração, Deus manifesta a sua vontade, começa a sentir o chamado para a vida religiosa. Para Camila, estes chamados nascidos do amor ao Crucificado são “mais amargos do que o fel”, porque sente uma instintiva e forte repugnância  pela vida religiosa, que para a mulher  do século XIII, se identifica com a vida monástica.

Ama a vida, o mundo, o seu palácio, os amigos, mas sobretudo não sente-se livre de algumas paixões, das quais precisa ser totalmente despojada aquela que quer servir verdadeiramente a Deus.  Sobre estas paixões os biógrafos tiraram as conclusões com muita fantasia, identificando por certo o gentil homem que Camila não sente de deixar. Sobre sua natureza não sabemos nada e não temos o direito de inventar. Aparece claro, porém, que nos encontramos diante de uma jovem mulher exuberante e por isso facilmente levada a sentir os impulsos da natureza, mas é sobretudo evidente que não se trata de mentalidade “naturalmente” religiosa ou devota.

O caminho de Camila possui todas as características de uma lenta conversão, que passa através de diversas etapas nas quais os acontecimentos externos são objetivamente irrelevantes, mas incidem fortemente no seu coração que se abre quase inconscientemente aos apelos de Deus. Atribui-se, assim, muita importância a uma carta de Pe. Francisco, em resposta a uma carta sua, na qual não diz nada de si, mas se preocupa com o bem espiritual de uma outra pessoa. A única referência pessoal é a conclusão, na qual a jovem escreve: “recorda-te de mim na serena elevação de tua mente”, pensando  que todos sentem na oração aquela paz que ela mesma experimenta.

O padre lhe responde, exortando-a a viver na virgindade e a vencer a si mesma. Camila acolhe estas palavras como se fossem pronunciadas pelo próprio Deus e se empenha com todas as forças a vencer as paixões, isto é, o seu apego aos prazeres. É isto um ulterior passo em direção à doação total que ainda não aceita, antes, se “rebela fortemente”, encontrando sempre novas desculpas porque a mais forte, que era aquela do seu desejo das satisfações terrenas, é enfim superado.
Resta-lhe ainda o apego à oposição do pai que a tem ligada por  “grande amor”... Não se trata de um pequeno obstáculo, porque César Varani não é somente ligado a essa filha por um particularíssimo afeto, mas é também o senhor habituado a fazer-se obedecer. Camila ainda não entrou na disposição interior de acolher o chamado de Deus. Assim, as dificuldades aparecem-lhe nos seus lados mais realísticos, mas não são vistas à luz da vontade do pai dos céus, ao qual nada é impossível.

...E de purificação

Antes de chegar à decisão final é necessário uma outra purificação, que a jovem  é convidada a cumprir mais uma vez através das palavras do Pe. Francisco que — contrariamente aos costumes — prega no dia do grande silêncio, isto é, no Sábado Santo, quando a liturgia cala com Cristo no sepulcro. Ele fala das disposições interiores necessárias para aproximar-se do sacramento da penitência e diz que quem se confessa sem o propósito de abandonar todas as coisas que podem levar ao pecado mortal, não pode comungar.

Entre as poucas pessoas que o escutam na igreja  dos  Menores, está também Camila, que sente como dirigidas a si aquelas palavras, que penetram  em seu coração com a dor do arrependimento. De fato, pensa: “Quase sempre comunguei sem sério propósito; não tive jamais a vontade e a disposição de deixar minhas vaidades e mundanidades, senão agora!” Esta realidade a atinge fortemente e ao entardecer se acusa na confissão.

O padre que a escuta toma muito seriamente as suas palavras e lhe dá a penitência mais dura que se poderia esperar: proíbe-lhe de receber a comunhão no dia seguinte  e lhe ordena severamente de repensar os seus pecados a fim de retornar para uma confissão geral! Este modo de proceder não nos deve maravilhar numa época na qual a possibilidade de receber a Eucaristia é ligada à permissão do confessor. Desusada também para aquele tempo é a proibição logo no dia da Páscoa, quando todos os cristãos são obrigados a participar ao banquete Eucarístico.

Camila obedece, mesmo se recebe muita confusão e vergonha dos presentes que são levados a pensar que deve ter feito algo de sério. A penitência porém não é repentina mas, acolhida voluntariamente, leva a jovem a sentimentos de profundo, direi, de total arrependimento e a prepara para receber todos os frutos do sacramento da reconciliação, do qual se aproxima após uma semana.

RESISTÊNCIA ao convite divino

Na mesma ocasião, fala também com o Pe. Francisco, que a exorta  a fazer-se irmã, recebendo a recusa da orgulhosa Varani, que opõem todas as suas naturais resistências ao amoroso convite divino. Em seguida a essa purificação, o chamado interior se faz mais urgente e Camila não o queria sentir, mas não podia fugir  pois essas vozes — assim se exprime, não encontrando outro termo, — falam à alma e não ao corpo. Cada vez que se coloca a rezar, lhe parece de “ir para a guerra. Porque há maior batalha do que esta?”

A coisa mais bela que anota e que nos deve fazer refletir sobre a natureza desta sua resistência ao chamado é que, não obstante a luta, não cessa jamais a oração. Compreendemos disto o quanto seja forte o chamado de Deus, o desejo Dele, o amor que se traduz na vontade de estar com Ele o mais possível.

O temor da batalha não assusta esta filha de  chefes, dotada de uma vontade firme, que Deus quer vencer com o amor, porque Ele, que a amou e a remiu, sabe muito bem que Camila poderá dar-se livremente só a Ele com uma adesão total. Entretanto, a luta se faz sempre mais estreita e uma vez o “benigno Espírito de Deus”, que  faz com que ela sinta mais forte do que nunca a urgência do chamado do Senhor, defronte ao seu forte senso de rebelião, parece quase ceder e dizer-lhe para fazer aquilo que quer. A jovem se alegra, pois não sente em consentir em fazer-se irmã.

Não compreende, então, que a luta está em seus últimos momentos, e numa sexta-feira, “um tal conflito, uma tal batalha na alma entre o sim e o não”, que lhe provoca um sofrimento também físico, tanto que se encontra toda úmida de suor. É a última resistência de um coração que é completamente tomado pelo amor de Cristo e finalmente :  “o livre arbítrio, o qual sempre esteve em sua força e vigor, então espontaneamente, não coagido, como juiz sentado a ver a cruel batalha, emite a sentença contra mim”.

Um “sim” sem condições

Preferimos copiar suas palavras porque não saberíamos reproduzir de modo melhor esta decisão tão sofrida. Claramente inspirada pelo Espírito e ao mesmo tempo livre e conscientemente acolhida. O “sim” transforma completamente as disposições de Camila, que “com tanto afeto e coragem delibera de servir a Deus, que se fosse necessário sofrer o martírio, prontamente o escolheria, antes de arrepender-se de um tal propósito”. Faz-se logo claro dentro dela, também o lugar no qual a vontade de Deus se cumprirá e sem sombra de dúvida pensa no mosteiro de Clarissas de Urbino, onde viveu santamente a tia.

Quisemos mostrar difusamente o caminho interior, a evolução espiritual desta jovem mulher do século XV, porque nos parece muito semelhante àquilo que pode ocorrer também nos nossos dias em quem tem a magnífica aventura de encontrar Cristo e depois porque tivemos a sorte de dispor da autobiografia da santa que, com o passar dos anos, recorda de modo nítido e vivaz o seu itinerário em direção a Deus. Aquilo que acontece após aquele “sim” que não teve testemunhas mas que, como todas as coisas grandes, ocorreu no íntimo diálogo de Camila com seu Senhor, é ainda uma acontecimento profundamente interior.

É o expandir-se do Amor de Deus em um coração que não coloca mais resistências, que Camila não sabe narrar a não ser com expressões  do Cântico dos Cânticos. Descobre então a paternidade de Deus, a doce amizade de Cristo, esposo da alma, no sentido pleno de Senhor absoluto de todo o seu ser e objeto único do seu amor e do seu desejo.

Nasce nela uma aspiração ardentíssima de deixar  o mundo, de abandonar tudo aquilo que antes amava e lhe parecia irrenunciável. É acompanhado de uma profunda humildade do coração, que deriva da convicção de ser a maior pecadora que existe sobre a terra e traz consigo uma gratidão imensa pela infinita misericórdia de Deus que quer perdoar justamente a ela. As graças e os dons de Deus fazem-na sentir-se sempre mais pequena.

Lógica conseqüência  do “sim” incondicional e sobretudo da centralidade do Crucificado é o desejo de sofrer, que não é fruto de uma fantasia doentia. Vimos que equilíbrio de mente e de coração existe em Camila! Trata-se, ao invés, de uma realidade tão profunda que somente quem ama pode compreender; somente quem descobriu algo do amor de Cristo, que quis morrer sobre a cruz para dar-nos a vida, pode intuir porque quem o  ama deseja, como Ele, condividir ao menos em parte o sofrimento que Ele quis sofrer por nós.

É a mola da vida de Francisco e Clara de Assis, de Coleta de Corbie e de Catarina de Bolonha, de Eustóquia Calafato e de Camila Varani, tantas personalidades profundamente individuais e originais, mas inteiramente unidas a Cristo Pobre e Crucificado.

Este ardente desejo do “mal sofrer” logo é satisfeito porque a jovem adoece gravemente e por sete meses luta entre a vida e a morte. É um sofrimento que carrega com grande alegria e não lhe tira a lucidez da mente e a possibilidade de permanecer unida intimamente ao seu Senhor. Não sabemos  de que doença se trata, estamos em grau de afirmar somente que sempre trará consigo as conseqüências, considerando-as um pequeno meio para participar na Paixão de Cristo.

Ver o “seu rosto”

O tempo que segue ao “sim” definitivo é um momento de graça particular. O seu caminho espiritual assim tão fortemente centrado no Crucificado a levou a queimar as etapas e chegar logo àquela contemplação que Deus dá a quem se abandona inteiramente à ação do seu Espírito. Camila “saboreia” com toda a intensidade da qual é capaz, quanto é suave o Senhor e nasce nela com violência o desejo mais ardente e mais profundo do coração humano, aquele de ver o seu rosto, “ a sua sereníssima e amabilíssima face”. E o pede com aquele ardor e aquela insistência que somente a continuidade de um relacionamento íntimo e pessoal consente e torna compreensível, muito além de qualquer lógica humana.

Narrando este momento interior que se gravou profundamente na memória, porque deixou uma marca que nunca poderá ser apagada do seu coração, Camila coloca à luz um aspecto de sua caminhada para Deus até então deixado na sombra. A beleza da natureza a leva a remontar a suprema beleza do Criador, inflamando sempre mais o seu coração. Exprime-o com uma tocante oração que não podemos omitir:

“Ó meu doce Jesus, se são tão belas as obras de tuas mãos, o que será o teu rosto esplendoroso? Mostra-te a mim, deixa-te ver! Meu Senhor benigno, porque fazes afadigar-me tanto? Somente tu és minha vida, minha esperança, todo o amor de meu coração e da minha alma. Porque zombas de mim, porque me escondes tua santíssima face?”

são palavras que cada enamorado de Deus pode compreender, porque lhes nascem espontaneamente no íntimo do coração, mesmo se não tiverem sempre o belíssimo ardor de Camila, típico de sua natureza ardente e amante. Agora não foge mais do Senhor, mas corre em direção a Ele, atrás dele, com todas as forças, as energias da mente e do coração e continua a apresentar-lhe o seu insistente e amoroso pedido, do qual, com passar do tempo, o fervor não diminui, mas torna sempre mais veemente.

Finalmente: “havendo-me feito sofrer seis meses por este desejo, assim me satisfez!  Eu pedia para ver seus glorioso rosto e Ele me mostrou as costas!” prossegue com a argúcia e o destacado senso de humor que a caracterizaram: “esse Jesus Cristo me faz cada coisa pelo avesso!”

Manifesta assim um belíssimo lado de sua personalidade, isto é, o não considerar-se nunca importante, não levar-se muito a sério nem mesmo nos momentos mais sublimes da vida. Esta pequenez, este não ter perdido nunca o sentido do “jogo” que nos faz crianças diante de Deus, nasce da extrema confiança no seu Senhor e da consciência existencial de ter recebido tudo como dom.

O tom brincalhão na narrativa da experiência mais elevada é também garantia da autenticidade de um relacionamento místico que não tem fronteiras e fantasias, mas nasce numa mulher completa, que se deixa preencher pelo amor de Deus. Por isso não teme descrever, o quanto lhe é possível, servindo-se de imagens, esta visão íntima e espiritual, que não se pode traduzir com palavras humanas e que deixou em sua vida uma marca que jamais se apagará, uma recordação indestrutível que nas horas escuras se transformará em nostalgia consumante.

Este período da época do cumprimento do desígnio de Deus sobre ela é caracterizado por outros dons especiais que não quer comunicar, “porque é muito melhor dizer pouco que muito”. É uma espera que se prolonga por dois anos e meio porque os obstáculos externos são fortíssimos e contrastam fortemente com a sua profunda paz interior.

A oposição do “Faraó”

A oposição do pai, prevista e temida, se revela tenaz e duríssima. Os meios usados para dissuadi-la do seu propósito são todos aqueles de que pode dispor um grande senhor. A primeira tentativa é aquela de dissuadi-la apresentando todos os prazeres e alegrias que o mundo pode oferecer. Camila agora é forte e recusa cada “carícia”. Vem então as “ameaças” e por fim a “prisão”, que a jovem abraça alegremente, porque lhe permite sofrer um pouco com Cristo.

Para descrever  tudo o que lhe aconteceu, aplica a si mesma a linguagem do Êxodo e chama “escravidão mundana do Egito” a sua vida no mundo. Afirma que o “potente Faraó” (trata-se do seu pai e não o chama assim por desprezo, ou falta de amor, mas pela sua forte oposição ao plano divino) “por dois anos e meio teve o coração endurecido”, mas no fim Deus mesmo lhe muda o coração.

Continuando com a belíssima imagem bíblica, narra ter “atravessado o mar vermelho e de ter sido colocada no deserto da santa Religião, isto é, no sacro Mosteiro de Urbino”. Quando Camila fala de seu caminho, exprime  muito bem a realidade pascal da vida cristã; mostra assim ter compreendido claramente o valor da libertação “dos vícios e dos pecados”, que o Senhor Jesus cumpriu para nós, morrendo sobre a cruz e torna-se atualidade dinâmica na  nossa adesão total e incondicional a Ele.

No mosteiro de urbino

Camila chega finalmente  em Urbino no dia 14 de novembro de 1481, com a prima Gerinda, movida pelo mesmo desejo de consagração total a Deus entre as Irmãs Pobres de Santa Clara. Vestindo o hábito da segunda Ordem franciscana, Gerinda se torna Irmã Isabel, enquanto Camila recebe o nome, insólito em nosso tempo para uma mulher, mas comum na sua época, de Irmã Batista.

A princesa de vinte e três anos que veste o hábito da pobreza não é uma principiante na vida espiritual; carrega nas costas um caminho caracterizado por um crescente de doação e despojamento, mas não inicia com a presunção de quem considera ter chegado ao fim. No mosteiro sente dever sempre mais progredir na pequenez e no escondimento, enquanto se alegra por haver encontrado um lugar no qual o intenso clima espiritual favorece extremamente a vida com Deus. Aqui alarga aquelas “Recordações de Jesus” que remontam ao momento decisivo da sua conversão, quando ainda vive na casa paterna, e são fundamentais para compreender as linhas essenciais da sua espiritualidade. Em parte nos são já conhecidos, porque ela os expressou com outros termos na Autobiografia, e já tivemos ocasião de falar deles, mas este escrito confirma mais uma vez a centralidade da Paixão em sua vida.

A última dessas “recordações” parece um pouco o compêndio do chamado de Camila e o sentido de tudo aquilo que viveu em seguida: “Recorda-te que Deus te quer só, só, nua, nua, no leito da cruz...” É o profundo mistério de um amor tão total e exclusivo, que não pode encontrar outra comparação a não ser aquela da união nupcial e se realiza mesmo no momento culminante da doação total que o Cristo cumpre sobre a cruz. Por este amor único e indizível é preciso abandonar cada coisa, cada apego humano.

Encontramo-nos aqui perfeitamente alinhados com o pensamento clariano. A linguagem é parcialmente diferente, mas a realidade é a mesma. As imagens do Cântico que florescem na boca de Camila — do qual também a seqüência desta “recordação” é toda entretecida — brotavam espontâneas do coração de Clara,  exatamente porque não existe outro modo para exprimir algo que é incompreensível para quem não fez nem ao menos uma pálida experiência.

Todo o pensamento de Camila, que é vida vivida e se torna doutrina espiritual, está contido nesta “recordação” que vai à raiz da “altíssima pobreza”, que ela vive em plena sintonia com Francisco e Clara.

O que a autobiografia nos diz do primeiro período de vida religiosa de Irmã Camila, confirma imediatamente aquilo que vínhamos dizendo. De fato, nasce nela “um santo desejo de penetrar no interior do deserto, isto é, nas secretíssimas penas do Coração de Jesus”. Assim a Paixão se torna o único argumento de sua oração, e é a origem do seu escrito mais característico, que a torna mestra de vida espiritual: As dores mentais de Jesus na sua Paixão; do qual teremos ocasião de falar em seguida.

No coração de Cristo

o desejo de entrar no coração de Cristo, que é a vontade de condividir tudo aquilo que é humanamente compreensível do abismo da dor que Jesus, homem perfeito e Filho de Deus, provou na sua Crucifixão, nasce do conhecimento experiencial do amor “pessoal” que Ele tem por cada um.

Camila de fato afirma que uma semelhante aspiração não admira porque, quando se maravilhava enormemente na descoberta contínua do amor que Cristo tinha por ela, pecadora e digna somente de receber os seus castigos, Ele lhe havia manifestado como “no seu coração estava escrito com letras de ouro: Ego te diligo Camillam”(te amo com um amor de predileção).

Trata-se de um modo concreto, direi plástico, para exprimir a intuição profunda, aquele instante único e inesquecível no qual a “certeza” de ser amada por Cristo se torna um fato quase tangível, um conhecimento tão real, mais “concreto” que toda concretude visível e terrena, capaz de mudar por certo o curso da vida. Então, após uma experiência semelhante, diz Irmã Camila, como não desejar entrar nas penas de um coração que ama assim, para condividir ao menos um pouco? E o Senhor a satisfaz tanto que se sente quase “submersa e sufocada no mar amaríssimo do Coração de Jesus”, isto é, na sua dor, alimentando este desejo do “mal sofrer” que será incrementado notavelmente pelos “homens” por ocasião de sua profissão religiosa.

Uma “profissão” sofrida

A sua adesão total e irrevogável a Deus, Camila a consumou naquele dia inesquecível no qual abandonou todas as reservas  e condições para por nele toda a sua vontade e o seu desejo. Aquilo que agora vive entre os muros do mosteiro de Urbino não é senão prática atuação. O “sim” total e definitivo  diante da Igreja, caracterizado pela profissão solene, porém, torna-se sempre um momento importante e significativo no caminho de adesão a Ele, de cumprimento do seu desígnio sobre nós. Assim, também Irmã Camila não pode não desejá-lo e esperá-lo como sinal do seu amor incondicional e exclusivo.

A este passo porém, sobre o qual a interessada não tem nem dúvidas nem abalo, se sobrepõem mil obstáculos externos, que não provém senão da família, mas que não estamos no grau de avaliar. De fato, a única fonte da qual dispomos é a autobiografia da santa que, endereçando-se a frei Domênico de Leonessa, o qual neste momento crítico é Vigário Provincial dos Observantes e por isso perfeitamente a par da coisa, não considera oportuno falar demais. De resto, é evidente que um discurso claro envolveria muitas pessoas e, por delicadeza para com todos, preferiu calar.

Aquilo que diz, porém, é suficiente para  compreender a grande “ tribulação amarga” que precede a sua “profissão pela qual se turbou toda a Ordem franciscana: freis e irmãs, senhores e seculares”. É inútil fazer conjecturas sobre o nascimento de defesas gerais contra essa profissão, que deveria permanecer um gesto reservado e vivido no escondimento de um mosteiro. Quando, porém, a interessada pertence a uma família que é “senhora” de uma terra vizinha, as coisas se complicam e penetram interesses terrenos que não tem nada a ver com o Reino de Deus.

Podemos imaginar o estado de ânimo de Irmã Camila, que pode experimentar mais uma vez como Deus leva a sério mesmo se as suas respostas se concretizam seguidamente numa direção que nuca havíamos imaginado. A fantasia divina é bem superior à nossa curta visão humana.

O seu incessante  e apaixonado pedido do “mal sofrer” é atendido com esta forte e tenaz oposição àquela profissão na Ordem das Irmãs Pobres que é querida por Deus, que representa a encarnação no hoje do seu seguimento do Crucificado Pobre. É um grande sofrimento, mas Camila deixou atrás de si os pedidos de “vontade própria”, assim vive no abandono, antes, na certeza de que no fim a vontade do Pai de cumprirá.

Ainda mais: está convencida de que os anjos se alegram, fazem festa por esta profissão que dará glória a Deus, não obstante toda a perturbação e a agitação entre as pessoas. É uma amargura que continua também, mesmo naquele dia; percebe-se no ar e no comportamento das pessoas que participam do rito naquela manhã imprecisa, que não podemos senão imaginar cinzento, de 1483.

Para Irmã Camila não se trata de uma hora de consolação, e não nos maravilhemos, porque entrou em Urbino para seguir um Crucificado e a sua sede ardente de sofrer com Ele nunca mais se apagou, antes cresce com o ardor do amor que incendeia sempre mais o seu coração. Por isso lê em todas as circunstâncias a presença amorosa de Deus que a guia em um caminho de sofrimentos sempre mais intenso, sempre mais despojado e livre de toda a ilusão, feito de uma cruz quotidiana, rude e pesada, acompanhada da maior solidão, aquela que Jesus provou no Getsêmani.

Em direção a camerino

Enquanto ao seu redor move-se toda essa contradição, na sua Camerino Júlio César Varani, que com grande dor deu seu consentimento a filha muito amada, sente terrivelmente a sua distância e descobre o único modo adequado para tê-la mais próxima. Decide assim fundar um Mosteiro de Clarissas em sua cidade. Não é homem de muito pensar e dá logo disposições para fazer adaptar o Mosteiro de Santa Maria Nova, que pertencia aos Olivetanos, para torná-lo apto para acolher uma comunidade de monjas.

No fim de 1483, os trabalhos terminaram e no início do ano seguinte, no dia 04 de janeiro o pequeno grupo de fundadoras, entre as quais se encontra Irmã Camila, entra no novo mosteiro. As irmãs não temem o rigor do inverno e os incômodos de uma viagem que as leva a atravessa também os Apeninos. Vão aonde a obediência chama, porque a vontade de Deus está cima de tudo.

A santa declara a sua vinda a Camerino ser somente “por obediência” ao vigário dos Menores, “bem consciente que à Divina Majestade agradava que eu retornasse aqui”. Não há nenhum apego à família e a pátria neste seu retorno querido por outros e não procurado nem sonhado pessoalmente por ela, mas o desejo constante de ver onde o Senhor a “manda”, porque somente aquilo tem valor para ela.

O retorno à sua cidade não é, sem dúvida, um fato indiferente para um coração assim tão apaixonadamente amante, quente e vibrante nos afetos e nos sentimentos, mas a sua terra e sua gente entraram em um mistério maior, são vistos através da defesa da cruz de Cristo.

Os últimos acontecimentos, enfim, no ano de “sua tribulação”, foram tais que deram-lhe  o sentido do “relativo” de cada acontecimento humano e purificaram-na ainda mais. No seu tratado sobre a “pureza de coração” falará longamente sobre a “crucificação que vem dos homens”, com acentos tão vivos e pessoais que traem a experiência vivida e lembram imediatamente estes fatos, que ela mesma viu como momento importante no seu caminho em direção à pureza do coração.

É, portanto,  livre de amar e alegrar-se diante das imagens familiares de lugares e pessoas, que se apresentam brevemente ao seu olhar antes de entrar na nova clausura, porque cada instante é vivido em companhia do crucificado, ou melhor, dentro do seu coração.

Então cada gesto, cada emoção humana se carrega daquela força interior que os torna ainda mais “ verdadeiros” e vivos, porque  animados de algo que os transcende e transfigura.

É aquele “não sei o quê” de excepcionalmente humano que se encontra nos homens e mulheres de Deus, que realmente é pura transparência  da vida divina que os anima. É um evento manifestado plenamente em Jesus de Nazaré, o Homem perfeito e o Filho único do Pai, um com Ele, mas que se verifica de modo mais ou menos intenso também em quem se deixa possuir por Ele, em quem tem a “memória” de sua Paixão continuamente impressa no coração e presente na mente e nos olhos interiores; em suma, em quem “está” sempre em sua presença.

Uma ulterior confirmação de tudo o que vimos dizendo nos é dada pelo fato ocorrido somente dez dias após a chegada a Camerino. É a única coisa que Irmã Camila recorda daqueles primeiros tempos. De fato, não se preocupa em falar-nos das dificuldades contingentes unidas a um início.

É verdade que Júlio César Varani procurará providenciar tudo, mas certamente a filha não lhe permitiu ir além de uma certa medida para não ser privada do bem da Altíssima Pobreza. Os incômodos de uma sistematização sem dúvida não faltaram, mas não incidiram sobre o caminho espiritual de Camila, que não se deixou perturbar por estas coisas porque está imersa na Paixão de seu Senhor.

Aquilo que conta está perfeitamente em linha com as suas características interiores então bem nítidas, mas nos fala também do clima difuso entre as irmãs vindas para a fundação e lembra a atmosfera que se respirava no Mosteiro de Urbino.

Do CANTO ao êxtase

Uma sexta-feira, dia dedicado particularmente à lembrança da morte do Senhor e por isso transcorrido numa atmosfera intensamente voltada para a lembrança do Crucificado, as irmãs estão sentadas em torno da lareira a espera de ir para as completas, a última oração do dia. Não é dito  que faziam recreação, como naquela hora acontece nos Mosteiros de Clarissas do nosso tempo. É certo, porém, que não é um momento de silêncio, porque a um certo ponto, uma irmã começa a cantar um “louvor” que fala  da “alma bendita” que quer seguir o Senhor Crucificado.

Trata-se de uma composição da época, atribuída autenticamente  com muita probabilidade a Santa Catarina de Bolonha, que permanece, por todo o século XV e outros, a mestra e a inspiradora do ímpeto interior da espiritualidade renovada nos mosteiros da segunda Ordem, sob o impulso da observância, numa linha de ardente conformidade com o Crucificado.

A irmã, de nome Constância, está fiando, aplicada numa ação familiar às mulheres da época, que as Clarissas cumprem naturalmente para conseguir o seu pão cotidiano. O gesto, usual e rítmico, feito diante do fogo que irradia calor em todos os sentidos, leva facilmente a seguir os próprios pensamentos e a abandonar-se ao canto, como fez esta Irmã Pobre, seguindo o impulso de seu coração.

Ao lado dela, Irmã Camila, atenta à costurar, acolhe logo o silencioso convite e prossegue no canto. Porém, identifica-se a tal ponto na realidade expressa daquelas palavras que descrevem o sofrimento de seu Senhor, ao ponto de desmaiar. As irmãs, assustadas, pensam se tratar de uma doença. Ao invés, é um acontecimento todo espiritual que no êxtase a transporta aos pés da cruz, aonde revive em si os sentimentos de Maria.

É como se estivesse presente lá sobre o Calvário e prova em si todo a dilaceração da Mãe de Cristo. Saboreia pois sensivelmente também as dores de Maria Madalena e aquelas de João. É um longo instante que dura até a uma da madrugada e se prolongaria mais ainda, se o amor pelas irmãs não a levasse a querer fazer cessar o seu sofrimento: de fato, não compreendem e estão em grande angústia.

O amor fraterno possui vantagens sobre a experiência mística e o fato nos fala mais uma vez do equilíbrio desta mulher e da ausência total nela de qualquer procura de si, sobretudo nas coisas do espírito.

Aos pés da cruz

O episódio, porém, a marca profundamente e enraíza nela com um sofrimento agudo que a atinge em cada nível, sensibilidade e coração, sentimentos e vontade, este momento da Paixão que até então não era particularmente objeto de sua contemplação. A sua natureza ardente, como já vimos, o seu caráter volitivo, a conduziam continuamente ao horto das oliveiras, onde Jesus consumou o seu “sim” no acolhimento pleno da vontade do Pai.

Agora se imprime nela um aspecto fundamental da vocação de Irmã Pobre: o estar aos pés da cruz, abraçada à cruz como Maria. É uma característica tipicamente clariana, vivida pela Pobrezinha de São Damião com aquela tonalidade própria sua, que tornava doce e suave a participação nas dores de Cristo e da Virgem, porque vivia com o abandono ternamente filial que lhe foi próprio. Basta reler as palavras que dirige a sua alma bendita antes da morte para nos darmos conta.

Porém, nos parece que na Varani a mesma realidade seja vivida com uma certa acentuação mais marcada de todos os aspectos dolorosos que tornam ainda mais “sofrido” o evento. Com isto não quero dizer que Clara não realizou a sua conformidade ao Crucificado com profundo realismo, no acolhimento pleno de tudo aquilo que trazia consigo de desprezo, pobreza, fadiga, tribulação. Porém, a própria história  de sua vida  e do seu itinerário a Deus a “estabeleceram” logo na Kénosis de Cristo, direi sem “violência” a uma natureza ardente, mas sedenta dele desde a infância.

Camila, ao invés, conhece mais fortemente as paixões e penetra no mistério com uma veemência e uma vitalidade totais, que trazem a marca da sua natureza e dão à sua contemplação um movimento mais vivaz. Por isso temos a sensação de menor doçura, mas não de menor paz. São duas tonalidades diferentes, mesmo se muito parecidas, de um único Amor, que toma a pessoa com todas as suas características e a transfere para Deus.

É uma dor assim tão forte que a faz permanecer “sensível” por dois anos com aquela agudeza que bem conhecemos nela e que põe-na sempre na linha do “mal sofrer” por Cristo e com Cristo.

Prosseguindo a sua autobiografia, irmã Camila se detém momentaneamente para falar-nos antes de tudo sobre seu caminho espiritual . Não nos resta senão segui-la, sem deixar fugir as breves anotações que aqui e lá afloram, colocando luz sobre a realidade histórica.

O único elemento concreto sobre os inícios em Camerino, que a jovem irmã anota quase por inciso, e que nos ilumina sobre a sua vontade e a de suas companheiras, é a luta pela Altíssima Pobreza, para poder professar a primeira Regra de Santa Clara. A firmeza sobre esta escolha fundamental  nos diz algo das bases concretas e evangélicas que são o suporte de um caminho espiritual, caracterizado por um despojamento total na nudez da cruz e de um amor sempre mais abrasado.
Um irmão no espírito

Exatamente naqueles primeiros meses de vida clariana em Santa Maria Nova, é eleito vigário provincial dos Observantes Frei Pedro de Mogliano, verdadeiro seguidor de Francisco, homem  de Deus e guia espiritual, com excepcionais dotes carismáticos. É a ajuda que o Pai das misericórdias escolheu para guiar os primeiros anos de vida clariana da jovem Varani. Ele deixará este mundo somente seis anos após estes acontecimentos, mas  a sua intervenção, logo neste período, permanece importantíssima para o desenvolvimento interior de Irmã Camila.

Os inícios da direção espiritual  são um pouco tempestuosos e nos dizem como a natureza ardente e impulsiva de Camila não se acalmou, mas na primeira ocasião, emerge veemente, quase a recordar-lhe que os dons excepcionais de Deus são mesmo “dons” e que todo o “bem” que realiza vem somente dele.

Mas vamos aos fatos. O novo vigário chega ao mosteiro e depois de haver falado diante das irmãs, se dirige à jovem que se encontra no parlatório com outras irmãs, exclamando: “Irmã Camila, prepara-te, porque quero te confessar antes que eu parta”. A reação  é imediata como podemos esperar da orgulhosa e voluntariosa filha do senhor de Camerino. Escuta dirigir-lhe um semelhante convite que se refere somente a ela diante das outras... Só a ela  cabe decidir  se confessará ou  não: na sua consciência ninguém pode entrar.

Sem refletir nem ao menos por um instante, responde: “mas eu não preciso me confessar!” Então  o padre insiste, revelando-lhe de ter-se sentido inspirado interiormente  a propor-lhe a inaudita vontade. Mas a jovem irmã está irremovível. Ele procura também falar com ela, em particular, para descobrir os motivos da recusa assim franca, mas não obtém outra resposta. Então se vai, dizendo-lhe para pensar.

Naturalmente, apenas partiu Frei Pedro, Camila cai em si e se arrepende do próprio comportamento, porque a franqueza que a caracteriza é desapiedada sinceridade para consigo mesma: não há outra alternativa senão escrever pedindo perdão. Eis jorrar de dentro um desejo vivíssimo de confessar-se com ele e, examinando-se interiormente, descobre pecados nunca confessados. Aproximando-se sempre mais da nascente do Amor, a sua consciência se afina, descobre e manifesta sombras antes desconhecidas.

Agora, porém, o padre demora, “como raposa astuta, para aumentar o seu desejo”. Cresce assim, sempre mais, a dor pelos pecados cometidos. É um sofrimento que aumenta dia após dia, que não a faz dobrar-se sobre si mesma, mas seguidamente a leva a consumir-se pela ofensa feita à bondade Divina. Pelo contrário, traz consigo uma consciência tão profunda da sua miséria, que chega ao ponto de fazê-la desejar com todo o coração que depois da confissão, o padre vigário a despreze ou por certo, segundo a sua expressão, “ a tomasse em grande ódio ou desprezo”.

Finalmente, pela metade de setembro, perto da festa dos estigmas de são Francisco, faz a sua “confissão geral com grande sinceridade, luz e desprezo de si mesma”. Frei Pedro “fica tão satisfeito e contente que então para sempre me amou de santo e espiritual amor mais do que qualquer outra filha espiritual”.

Na história da Igreja há um contínuo suceder-se de amizades que o Espírito gera entre os santos. É a força do seu amor que habita em ambos a alimentar esta íntima comunhão entre duas almas que não se pode reduzir as categorias ordinárias da amizade humana. Pode-se dizer que não só o Espírito as fazem brotar, as vezes por caminhos misteriosos, mas é Ele mesmo que as conduz, segundo os desígnios do pai. Manifesta assim  quais magníficas potencialidades estão reclusas no coração humano, capazes de libertar-se quando o sim total e incondicional ao chamado de Deus liberta progressivamente o coração dos laços do egoísmo e da possessão. O dom grande de uma purificação do coração que o perdão de Deus traz consigo, em quem se doa a Ele na plena consciência da própria indigência, precede graças singulares que caracterizam este momento do caminho espiritual de Irmã Camila.

A visita de clara

poucos dias depois, tem uma visão interior. Afirma que lhe dava mais alegria de vê-la com os olhos da alma que “se houvesse visto com os olhos do corpo”. A narrativa traduz qualquer coisa de indiscritível, embora na sua aparente simplicidade. Trata-se de clara percepção da presença de uma belíssima Irmã Pobre diante da qual não se pode fazer outra  coisa a não ser ajoelhar-se.

Não compreende facilmente de quem se trata, mesmo se a experiência dura mais de quinze dias. Pensa que o Senhor a queria iluminar para que possa dar seu sim favorável a acolhida de uma irmã de outro mosteiro, que inicialmente recusa admitir. Também este traço de sua personalidade nos diz o quanto está atenta a não favorecer comportamentos que desviem do verdadeiro caminho de abandono e de renúncia das filhas de Santa Clara, colocado em perigo pela instabilidade e pelo desejo de mudar de ambiente sem motivo.

A luz sobre a revelação interior lhe virá, porém, na compreensão dos seus efeitos, isto é, no grau de “amor e devoção para com a gloriosa Mãe Santa Clara” que lhe permanece no coração. Descobre assim que se trata mesmo dela, e conclui: “se pelo sangue de Cristo irei ao Paraíso, conhecê-la-ei entre mil e mil  e, abraçando-a, lhe direi:’ minha Mãe dulcíssima, eras tu aquela que no mundo me visitaste!’ ”.

Esta “visita” é como  o sinal da autenticidade de um caminho que refaz a aventura evangélica de Clara de Assis e que então levara Irmã Camila a “estar” abraçada aos pés do Crucificado como a sua dulcíssima Mãe, que nunca se separou daquelas chagas.

Poucos dias depois uma graça bem maior a invade e nos narra por imagens, como tentam sempre fazer os místicos. Logo após, seguimos a sua narrativa procurando penetrar, até onde nos é possível, o sentido. Vem a ela dois anjos com vestes cândidas e depõem a sua alma “aos dulcíssimos pés crucificados do Filho de Deus encarnado”.

A profundidade do amor

A experiência mística dura bem uns dois meses e é tão forte que parece falar e agir “sem alma”, porque esta permanece continuamente lá aos pés do Crucificado. Á consciência íntima, interior, que só Deus pode dar, desta unidade tão forte com o Senhor Crucificado, de tolher à alma cada movimento que não esteja nele.

Os místicos se encontram sempre abraçados aos pés do Crucificado, porque a consciência profunda, existencial da sua “nulidade”, e por outro lado, a experiência do “excessivo” amor de Cristo os leva a um gesto de total adoração e “mergulho no abismo” das suas chagas. Tentam descrevê-lo com os limitados meios expressivos que têm à disposição e  nós, que não tivemos a experiência deles, não podemos nada a não ser balbuciar na tentativa de explicar aquilo que somente o jogo do amor pode fazer intuir.

Para Irmã Camila resta um ardente amor para com os Serafins, criaturas ardentes de amor, acompanhado do desejo de que um deles purifique os seus lábios como aconteceu ao profeta Isaías, e o suplica à Mãe de Deus, rainha dos Anjos. A resposta não tarda a vir: passam somente alguns dias. É noite, as irmãs deixaram o coro após o matutino e Camila permanece sozinha em oração. O pensamento vai “ ao grade amor que Deus tem pelas criaturas” e se encontra em “um mar tão alto e profundo, que muitas vezes quereria voltar atrás, se fosse possível”.

Trata-se de uma iluminação interior que não se pode explicar com palavras, mas tenta manifestar “qualquer coisinha, antes apenas três coisas”: Se por um absurdo existisse um outro deus em tudo “semelhante a este nosso Deus benigníssimo e santíssimo, o qual fizesse por seu amor todas aquelas coisas que Ele fez por nosso amor, restaria dois pontos em débito que jamais se poderia pagar.” O primeiro é este: que Ele amou por primeiro. O segundo é: que este outro deus sofreria por um Deus igual a ele, “mas Ele sofreu por nós, vilíssimos vermes cheios de pecados”.

Compreende então que “todo amor nosso a Deus é um ódio péssimo...” e ainda que “a gloriosa Mãe de Deus com todos os anjos e homens não é suficiente para agradecer a divina caridade pela criação da mais pequena flor existente sobre a terra...” Então, “com a cabeça inclinada até o chão”, não pôde fazer outra coisa senão pedir a Deus para colocá-la “perpetuamente”, enquanto viver, “aos clementíssimos pés de seu Filho Crucificado”. Vê  “o extremado amor sem medida que Deus tem pelas criaturas”, que quando volta a si não pode fazer outra coisa a não ser exclamar: “ Loucura! Ó, loucura!”.

Preferimos não fazer comentários a esta narrativa tão tocante que nos revela algo da profundidade do amor de Deus, que o coração desta mulher ardente e enamorada manifestou na pequena gota que lhe é doada, embora tão grande em confronto com aquilo que nos é ordinariamente concedido compreender e experimentar. Estes rasgos de céu nos fazem percebe alguma coisa da verdadeira vida, aquela que nos mergulhará para sempre neste oceano de amor.

Portanto, não nos maravilha se, após uma semelhante experiência, Irmã Camila, “!inflamada e queimada por este ardente fogo espiritual”, deseja com todo o ímpeto da alma, sair deste corpo para estar com cristo.  As palavras do Apóstolo: “Desejo morrer e estar com Cristo” lhe vem espontaneamente aos lábios, porque são a voz de sua experiência e compreende que o Serafim invocado verdadeiramente veio a ela.

Descobre que os Querubins e os Serafins que estão sempre junto ao trono de Deus, vêm aos homens para iluminá-los e inflamá-los. Compreende também que a ela vem sobretudo os Serafins, porque em seu coração domina o fogo do amor e não a iluminação, embora havendo recebido uma muito grande. É de fato uma mística franciscana em perfeita sintonia  com o inflamado amor que ardia em seu pai Francisco quando o Serafim do Alverne imprime nele os sinais do amor crucificado.

A chama de amor que incendeia o coração de Irmã Camila a conduz espontânea e diretamente em direção ao sinal mais tangível da presença de seu Senhor. Nasce nela uma fome insaciável da Eucaristia, um desejo ardente e contínuo de receber o Corpo de Cristo. Numa época que não conhece a comunhão diária, o seu “apetite” pode ser saciado somente aos domingos. Assim, cada dia da semana é vivido como espera e preparação para este encontro.
As “dores mentais”

Deste sacramento de amor brota uma imersão ainda mais profunda na Paixão do Senhor, que não a abandona jamais, que nenhuma circunstância da vida é capaz de interromper. Estamos em 1488 e Camila, que tem então trinta anos e chegou ao cume da experiência do Crucificado, sente a inspiração, por ela traduzida em termos de explícita ordem divina, de escrever aquelas “dores mentais da Paixão do Senhor” que fazem dela uma singular mestra de vida espiritual.

No início da obra, explica o porquê da ficção literária que a leva a escrever o tratado em terceira pessoa. Trata-se simplesmente do desejo de escondimento, da vontade de ajudar os irmãos a penetrar no mistério do sofrimento de seu Senhor sem aparecer, sem revelar o quanto estas considerações são importantes para o seu caminho espiritual.

Não podemos deixar de parar brevemente sobre este escrito endereçado a Frei Pedro de Mogliano, ao qual manifesta não querer jamais dar a conhecer às irmãs que estas “devotas considerações “, as vezes narradas nas conversações comuns, nasceram de suas meditações e contemplações pessoais. Há aqui a vontade de ter escondidos os “segredos do Rei”, que tanto estava no coração de Francisco, acompanhado do desejo de manifestar as obras de Deus em utilidade das almas enamoradas da Paixão de Cristo.

A  chave para compreender estas páginas nos vem de uma clarificação que Irmã Camila coloca no fim de seu trabalho e que, logicamente, deveria se encontrar no início. Evidentemente, no voltar-se ao Pai, além da seqüência  lógica que lhe é imposta do plano da narração, sente a necessidade de manifestar o centro, o lugar constante de sua contemplação.

Camila, desde os inícios de sua conversão, se encontra a refletir, a imergir-se nos sentimentos de Jesus no horto do Getsêmani, “onde suou suor sangüíneo”. O mistério da sua angústia mais profunda se desenvolve até aquele : “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice”, que nos revela inteiramente a sua humanidade no ato de saborear até o fundo a amargura do abandono, da solidão, da incompreensão.

Penetrando na realidade daquela “hora”, Camila relembra aquelas que chama de “dores mentais”, isto é, os sofrimentos mais profundos do Redentor, e afirma que a consideração dos aspectos externos da Paixão é comparável a uma gota de bálsamo que irriga o exterior de um copo cheio de licor suavíssimo. Quem, ao invés, entra no “vaso”, isto é, “no coração e mar de Jesus bendito será saciado até não querer mais”. A contemplação dos sofrimentos íntimos de Cristo, que recorda à mente toda a dor e todo o amor da Paixão que Francisco queria provar antes de morrer, introduz profundamente no mistério de seu amor.

O caminho de Irmã Camila que procuramos rastejar até aqui e nos dá uma idéia da força transformante da contemplação “das dores mentais do mar amaríssimo do seu esfomeado coração”. Em seu tratado enumera oito“ dores mentais” e as escreve com estilo característico que bem conhecemos da autobiografia. O ponto de partida, que é a base de cada consideração sua, é o pensamento do “grande amor que Cristo teve pela criatura”.

Para compreender aquilo que esta enamorada do Crucificado vem dizendo, é preciso verdadeiramente penetrar no seu coração, descobrir as capacidades imensas de sofrer reclusas no homem Jesus. Exatamente a misteriosa união da sua humanidade com a pessoa do Filho de Deus dá à sua sensibilidade humana uma capacidade de amor e de dor que supera infinitamente a nossa imaginação. Quem se aproxima deste mistério com amor ardente e abandono total pode nos dizer alguma coisa, pode ajudar-nos a penetrar um pouco mais neste abismo. Camila, olhando o amor de Cristo por nós contempla o seu sofrimento pelos homens que não acolhem sua salvação, que O refutam e que serão separados dele para sempre.

É uma dor comparável aquela que se experimenta quando um membro de nosso corpo é amputado, arrancado violentamente de nós. Usando esta comparação, Irmã Camila demonstra ter penetrado plenamente no sentido da imagem paulina do Corpo aplicada à realidade da Igreja.

Este sofrimento é para Cristo uma amputação violenta, enquanto os sofrimentos causados por todas as fraquezas físicas e morais, das provas e tentações daqueles que se salvam são chagas dolorosas como carne viva de um membro doente.

O seu sensibilíssimo Coração sofre, pois, de maneira indizível e inigualável aquela dor agudíssima que traspassou a alma de sua dulcíssima Mãe, superior àquela de toda criatura humana. A consciência de um sofrimento assim tão atroz é tornou-se ainda mais forte pela impossibilidade de tirá-la, para carregá-la somente sobre si. A Mãe das Dores devia ser associada ao Filho também na prova suprema; Irmã Camila penetra de tal modo nesta realidade, que não suporta mais e pede ao seu Senhor para não fazê-la provar posteriormente.

No Coração de Cristo, naquela hora suprema, passou portanto todo o sofrimento dos amigos diante da sua paixão. Antes de tudo saboreou a dor atroz de uma mulher ternamente amante que devia passar através dessa prova para se tornar apóstola dos apóstolos. Lendo esta página sobre Maria Madalena, sente-se vibrar a ardente, apaixonada força do coração de Camila. O sofrimento de Maria Madalena que vaga ao redor do sepulcro para ver, ao menos morto, Aquele que é o único objeto do seu amor, lembra fortemente a intensidade de amor da contemplativa Camila, abraçada aos santíssimos pés do Crucificado. Não é por nada que vê o modelo da “contemplativa” nesta mulher que exatamente pelo seu desmesurado amor, teve a alegria de ver por primeiro o Ressuscitado.

De Maria Madalena, o olhar se coloca facilmente sobre os discípulos, sobretudo sobre os apóstolos que Jesus amou ternamente e que serão então dispersos e chamados a dar a vida por Ele. Jesus sofreu antecipadamente seu martírio, sofreu por não poder evitá-lo, por não poder assumir tudo sobre si.

Ainda, mas bem de outro modo, foi traspassado de dor pelo traidor Judas e pela cegueira de seu “predileto povo judaico”. Enfim, o último grande sofrimento é a ingratidão de todas as criaturas diante do seu excessivo amor. Neste ponto, Irmã Camila transborda na efusão dos seus sentimentos, que a levam a ver me si a mais ingrata das criaturas. Reflete em todo o amor que Ele verteu sobre ela, e cada fraqueza lhe parece como grande traição. Sente-se pior que Judas, digna de todo o desprezo e acha inaudito que Deus continue a amá-la. Mas deixemos a ela a palavra: “Tu, Senhor, por graça nasceste em minha alma e me mostraste o caminho, e a luz e o lume da verdade para chegar a ti, verdadeiro paraíso. Nas trevas e na escuridão do mundo, Tu me deste a vista, o ouvido, fizeste-me caminhar e falar e ressuscitaste em ti, verdadeira Vida que dá a vida a cada coisa vivente. Ora, quem te crucificou? Eu! Quem te flagelou na coluna? Eu! Quem te deu beber vinagre e fel? Eu !”.

O contínuo submergir-se no Amor de Deus se estabelece na verdade sobre si mesma e faz saborear até o fundo a gravidade de cada traição, de cada pecado. A profunda consciência da própria ingratidão leva-a a considerar com intuição fortíssima a realidade de um semelhante sofrimento do Coração de Cristo que causou a ingratidão de todos os homens.

Com estas considerações, que lançam uma abertura sobre a sua contínua união com o seu Senhor Crucificado, Camila conclui a sua exposição, deixando-nos a impressão de uma profunda e inalterável vida mística. Mas a carta de acompanhamento ao seu Padre Pedro nos diz como tudo isto, ao fim de 1488, é somente uma imensa, consumante recordação.

A grande, amaríssima prova

Nas últimas páginas da Autobiografia, descobrimos que esta grande prova teve início durante a oitava de São Francisco, em seguida a uma fortíssima tentação que Camila chama: “campo da terrível luta, cercado ao redor por potentes inimigos”, das mãos dos quais “só com a força divina poderia fugir”. Jejua, ora, e na noite, em sonho, então não mais por aquela iluminação à qual estava habituada, e que agora lhe é subtraída, compreende o sentido daquilo que está ocorrendo.

Sente-se no exílio e cita o salmo 136 com o qual os hebreus exprimiram toda a sua amargura de exilados: “Sobre os rios da Babilônia... suspendemos as nossas cítaras”. E sintetiza a sua nova realidade afirmando: “aqui termina todo meu bem e começa todo o meu mal”. Toda a Autobiografia deixa entrever esta hora de grande sofrimento porque, quando Irmã Camila narra as maravilhas de Deus em si, conclui sem retroceder: “Eis o que fui e eis o que sou”.

Mas a intensidade da prova nos é revelada em toda a sua crueza, exatamente nesta carta ao Padre, que conhece a fundo sua alma. É um grito do coração, que só pode compreender quem fez a experiência da intimidade indizível e fortíssima com seu Deus, que provou a bondade do amor do Senhor e improvisamente se encontra na escuridão mais profunda.

Esta subtração total de Deus faz parte do caminho espiritual e indivisível da conformidade ao Crucificado que experimentou a angústia e o abandono do Pai. Quem a vive torna-se imerso num sofrimento que não tem comparação sobre a terra e que as palavras de Camila deixam entrever um pouco: “Ó meu Deus, arrancaste-me a medula do coração e todos os ossos espirituais. Ó pés clementíssimos (do Crucificado) queres fazer-me estraçalhar o coração. De ti estava enamorada como uma outra Madalena. Disseste-me que querias que eu estivesse só, só no suplício da cruz que me querias dar. Ai de mim! Muito me deixaste só, porque me subtraíste e privaste e tolheste a alegria, companhia e tesouro de teus pés crucificados, junto dos quais estava prostrada em terra como uma cachorrinha! Não me dôo, meu Senhor, que Tu me deste um pontapé, afastando-me de ti, porque o mereci, mas me dôo e choro porque não me deixa tornar a apertá-los e beijá-los de novo, como faz a cachorrinha fiel ao seu patrão e senhor!”

sozinha na noite

A “vida espiritual”, narrado o início da terrível prova que golpeou Irmã Camila, tem ainda poucas notas que se movem na ótica dessa situação de escuridão e de total ausência dele. Toda a ajuda humana lhe é retirada, porque, na solidão mais profunda, afunda sempre mais no vácuo desta dor. Mas Deus, que se manifesta ainda mais Pai em meio às tempestades, dá-lhe por três vezes o conforto da visita do seu Padre Pedro, para depois levá-lo embora definitivamente em julho de 1490.

Nestes anos “duros” a sua oração não pode ser outra coisa que súplica e imploração. Restam dois testemunhos escritos. No primeiro, dirige-se ao “dulcíssimo, benigníssimo Deus, Pai das infinitas misericórdias”. Chama-se a si mesma de ovelhinha selvagem, tal de fato se considera no profundo da alma, enquanto suplica a Deus para “estreitar sua aflita alma com os seus dulcíssimos braços, como a erguia nos antigos dias”. Continua implorando: “Dá-me, meu Senhor, o beijo da tua santa, desejada paz, e põem fim a esta guerra mortal que dura quase três anos. E se por outro caminho não o mereço, faze-o com a morte, meu doce Senhor”.

 O sofrimento é tal que não se pode descrever. O desejo da morte não nasce da vontade de ser libertada do “mal sofrer”, mas do incontível desejo de tornar a estar com Ele, de gozar dele.

Na segunda oração, volta-se ao “doce Senhor Jesus Cristo” e pede-lhe para transformar-lhe o coração, que vê num abismo de pecado e  ingratidão, incapaz de erguer-se sem Ele, e termina afirmando que quando Ele a tornar capaz de “dar amor por amor”, então “o seu coração estará no céu, louvará sempre seu santo nome... fará sempre a sua vontade”.

O acesso à duração da prova nos leva a 1490. De um outro escrito, do qual nos ocuparemos mais adiante, sabemos que “sofre” esta grande tribulação por cinco anos contínuos, isto é, até 1493. Não sabemos “como” teve fim esta longa purificação. Sabemos, porém, que “não a deixou o pensamento de Deus”: exatamente “neste espaço de um tão perigoso tempo se fez um hábito imóvel do mesmo pensar em Deus”.

Colocou toda a vontade e todas as energias em permanecer constantemente em sua presença, mesmo se isto renova continuamente o sofrimento atroz da “ausência” dele. Descobrimos ainda uma vez a fortaleza de ânimo de Irmã Camila,, o seu não retroceder sobre o caminho empreendido, a qualquer preço. É exatamente aqui que demonstra não ter aderido a Deus com inconseqüência, mas com a consciência de que nada poderia fazê-la voltar atrás na sua contínua busca dele.

Ela mesma afirma que a pureza de coração se conquista muito mais rapidamente tendo o olhar fixo nele, que com as mais experimentadas penitências.

recordação do Padre pedro de Mogliano

Também neste período o seu sofrimento não cala. Mas não fala de si. O reconhecimento, o afeto e também o desejo de consolar quem, como ela, sofre esta perda, levam-na a narrar a  Elizabete Gonzaga Montefeltro, duquesa de Urbino, o “feliz trânsito” de seu Padre Pedro de Mogliano, há pouco ocorrido.

Da dedicatória de saudação, que Irmã Camila antecipa à narração, aprendemos que desde há muito tempo desejou comunicar-se com esta parenta e amiga, que deve ter tido a ocasião  de conhecer de um modo totalmente outro que superficial, durante a sua permanência em Urbino, nos início da vida religiosa. O silêncio e a solidão do mosteiro, além das distâncias, impediram os contatos, mas não cancelaram da mente e do coração da Irmã Pobre a doce imagem desta duquesa.

Num momento tão doloroso para ela, a indômita filha de Júlio César Varani não se dobra sobre si mesma, mas se volta aos irmãos. Enquanto sente-se aprofundar no abismo do inferno, narra as virtudes do seu “santo” e “ glorioso Pai”. Deste escrito tiramos luz sobre a figura do frade menor e sobre a mentalidade da época, mas não um aprofundamento sobre o conhecimento da vida da Santa.

No ano seguinte, na escuridão da sua noite, brilha uma pequena luz, graças a um encontro com o monge olivetano Antônio de Segóvia. Alegra-se e rende graças a Deus numa breve página escrita em “memória de tanta alegria”. Sob a sua direção, que talvez se prolonga até a partida do monge de Camerino, ocorrida em 1496, Irmã Camila sai de sua tribulação, reconquistando com uma maturidade nova, a habitual intimidade com o Senhor.

Queremos saber algo a mais sobre estes anos nos quais o sofrimento da Irmã Pobre cala. Mas nos é dado somente intuir que nesta última parte do século, pleno de acontecimentos dolorosos, a sua oração tornou-se mais do que nunca uma intercessão por todos.

No vértice da história

Estamos nos anos dominados pela ameaça de uma invasão turca, da penetração da Itália das tropas de Carlos VIII, com todas as conseqüências morais e materiais conexas com a marcha de um exército chegado até Nápoles. Contemporaneamente, encontramo-nos a viver um dos períodos mais tristes da história da Igreja, no qual é permitido tocar com a mão o milagre de sua sobrevivência, a realidade da assistência do Espírito Santo e a promessa de Jesus de que “as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. É um momento do pontificado de Alexandre VI Borja, figura tristemente famosa, que só Deus misericordioso é chamado a julgar e que é olhada com a mentalidade do tempo e não com a nossa. Do ponto de vista da transmissão da Fé, ele não cometeu erros doutrinais, mas nas coisas temporais deixou-se dominar por César Borja, o duque Valentino, aquele chefe sem escrúpulos e cheio de ambições que também não podemos avaliar com a nossa mentalidade.

Esta realidade, já angustiante por si mesma, faz sofrer profundamente uma mulher assim intensamente amante, como Irmã Camila, e assim tão penetrada no mistério de Deus, capaz de compreender qual seria o bem para a Igreja e para a Itália. É uma ameaça que se aproxima sempre mais e toca-a nas suas raízes mais profundas, quando em março de 1501, o Papa Alexandre VI lança a excomunhão contra Júlio César Varani, o seu então velho pai, sobretudo por motivos “financeiros”, que são um mal crônico dos príncipes da época, sempre sem dinheiro e jamais em condições de pagar ao erário do Estado Pontifício, do qual são vassalos, os pesados impostos.

Verdadeiramente, o senhor de Camerino teve sempre ótimos contatos com a Sé Pontifícia e seguidamente, no passado, havia obtido perdão de despesas para suas benemerências militares, como chefe das milícias pontifícias e para obras sociais, como a reconstrução dos muros da cidade. Agora caiu em desgraça por diversos motivos: em sua corte se refugiam nobres romanos perseguidos por Valentino e, além disso a casa Varani, animada pela presença dos quatro jovens filhos de Júlio César, está sempre cheia de juventude que não tem pelos na língua e denuncia os males do estado da Igreja.

Mas o revés mais grave deriva sem dúvida das visões de César Borja que, depois da expedição à Romanha, da qual foi proclamado duque, marcha para as Marcas com o fim oficial de punir os rebeldes. Na longa Bula papal, os motivos de acusação sucedem-se com uma gravidade impressionante, para chegar a última carta, a mais tétrica, a mais terrível, baseada somente numa notícia vaga. Contra Júlio César é lançada a acusação, não provada, mas colocada ali como uma injúria dificilmente cancelável, de ter matado o irmão Rodolfo.

Esta sombra terrível ressoou, sem dúvida, nos ouvidos e no coração daquela filha tão ternamente amada que, embora na intimidade mais profunda com o seu Deus, permanece sempre a mulher ardente que vibra de dor pelos seus. A sua devoção à Igreja visível e ao pontífice, que vai bem além da pessoa, porque tem suas raízes na Fé, leva-a a sofrer ainda mais por esta separação do pai da comunhão eclesial.

Estamos convencidos porém, que irmã Camila, penetrada profundamente na paz de Deus, inundada da verdadeira sabedoria, enfrentou a prova com viril coragem. Pensamos não enganar-nos pois, a sua maturidade espiritual nesta hora, que a vê com mais de quarenta anos, é bem documentada num escrito que remonta a esta época. Deve ser um pouco anterior aos fatos que estamos narrando, porque de outro modo seria impensável não encontrar o mínimo aceno às circunstâncias concretas.

As “instruções ao discípulo”

Trata-se das “Instruções ao discípulo”, identificado pelos críticos como Giovani de Fano, frade menor. Admirável abertura sobre a vida espiritual de Irmã Camila nestes anos. Encontramo-nos frente às suas bem notadas características, mas o tom é mais pacato, direi, mais sapiencial. Falta o vigor apaixonado  da Autobiografia e das Dores Mentais, mas a veia inspiradora é sempre a mesma. É aquele amor exclusivo e forte pelo Crucificado, que a faz penetrar nas fibras mais profundas do seu Coração, que sempre é a mola de sua vida. Agora se faz mais profunda, mais imperturbável, perdeu um pouco da veemência, mas conquistou ainda mais em solidez.

Em suma, acontece nela aquele caminho natural do amor que, atravessada a soleira dos quarenta anos, se faz menos exuberante, porém mais tenaz e mais forte. É, pois, evidente o grande salto de qualidade devido a superação daquela terrível prova anterior que marcou-a profundamente e no contínuo confrontar-se com os acontecimentos deste mundo, vistos com os olhos de Deus.

Potenciando sempre mais a sua rica humanidade e feminilidade, sente-se profundamente “mãe” no espírito. A esta “reverenda alma, o meu reverendo filho em Cristo”, de cuja dignidade sacerdotal esta bem consciente, não teme pedir para imitá-la no caminho que o próprio Senhor a fez empreender. Além da ficção literária que a faz falar numa terceira pessoa, são bem evidentes as referências pessoais e o desejo de comunicar a sua experiência espiritual para que se torne vida no discípulo.

Um traço característico dessa obra, que também é revelador da estrada completada, é o forte destaque do amor fraterno. Nos inícios da vida espiritual, o olhar apaixonado ao Cristo é inteiramente ocupado nele, mas  esta imersão nele  conduz a um amor sempre maior por aqueles que Ele ama. São notas muito concretas, que nascem da experiência e partem do cume do amor pelos inimigos, exortando a evitar toda a murmuração e juízo, a ser generoso o dom de si aos outros.

Naturalmente a raiz desse comportamento é uma profundíssima humildade que seguidamente, quando ninguém a vê, leva-a a “beijar a soleira da porta da igreja, onde põem os pés as irmãs, achando-se indigníssima de colocar a sua boca pecadora aonde elas põem seus sacrossantos pés virginais e santos”.

Parece-me que uma das últimas expressões deste tratado nos dá a chave para compreender o seu posicionamento diante dos acontecimentos que se aproximam, já prenunciados por aquela famosa Bula: “Ó! Como é pobre aquele que quer outra coisa senão Deus! Ó! Quanto é rico quem não tem outra coisa senão Deus!”

a hora do exílio

Em junho de 1501, enquanto as messes tornam-se douradas nos campos, e renovam o milagre da vida, os temores e as angústias que se agravam no coração dos Varani se tornam terrível realidade. César Borja, ocupando Urbino sem dificuldade, se aproxima sempre mais de Camerino.

A hora é tão grave, que Júlio César Varani pensa logo em colocar a salvo o pequeno Sigismundo, filho de Venâncio, com a sua jovem mãe, revivendo no íntimo o drama de sua infância. Temendo pelo porvir de sua família faz partir também João Maria, o último dos filhos.

Estas partidas principescas, em suntuosas e confortáveis carruagens, acontecem exatamente enquanto um outro pequeno grupo, talvez somente duas pessoas, se afasta a pé em direção a Fermo.

Trata-se de Irmã Camila e de uma outra clarissa, que tem a desventura de ser aparentada com os Varani. A presença delas no mosteiro poderia custar caro a todas as irmãs.

Assim, as duas Irmãs Pobres, que renunciaram voluntariamente a todas as vantagens de sua condição social, encontram-se a sofrer as conseqüências do drama de sua família. Porque o mundo não esquece e não apaga as suas categorias e hierarquias de valores.

Sentimentos opostos ocupam seus corações. De um lado o abandono confiante e confidente nas mãos do Pai, que se torna cada vez mais o seu único bem, acompanhado de uma paz íntima que vem do possuir a Ele, que nenhum acontecimento terreno poderá arrancar. Do outro, o indizível sofrimento de ter que deixar o mosteiro, unido àquele não menos lancinante pela sorte da família e da cidade. Sem dúvida é mais aguda em Irmã Camila, que é tocada nos afetos mais caros.
Na filha de Júlio César Varani prevalece indubitavelmente a oferta de si e da própria dor pela salvação dos seus e da pátria. Afloram à mente as palavras da Regra sobre a “altíssima pobreza”, que é sinal do “Reino dos Céus” para a Irmã Pobre que, vivendo como “peregrina e forasteira neste mundo”, não quer ter “nada mais sob o céu”.
Não sabemos porque as duas Clarissas vão a Fermo, que está sob a influência de Valentino. De fato, devem abandoná-la logo, porque os maiores da cidade sentem-se ameaçados pela presença de dois membros da família Varani e se preocupam imediatamente em encontrar um refúgio mais seguro para as duas irmãs.

Irmã Camila e sua companheira colocam-se novamente a caminho em direção de Atri, aonde as esperam a duquesa Isabela Piccolomini Tedeschini. Queríamos saber algo desta viagem, que feita a pé e seguidamente com dificuldade de encontrar pessoas a dar hospitalidade, não é nem breve nem rápida: se pensarmos que nos encontramos diante de duas irmãs de clausura certamente não habituadas a caminhar a pé por estradas de montanha, podemos fazer uma idéia da dificuldade e também dos perigos.

Porém, todas as dificuldades são superadas e as duas Irmãs Pobres chegam finalmente a maciça e segura fortaleza da senhora Isabela. Elas percebem, sem dúvida, o contraste entre seu mosteiro e esta rica moradia, mas tão pobres  a ponto de ter necessidade de tudo e de não poder permitir-se escolha de nenhum tipo.

De resto, não são as primeiras experiências espirituais. Irmã Camila já tem atingido  aquele equilíbrio que lhe permite ser fiel à sua vocação em cada circunstância e sabe que deve vivê-la no hoje, porque o amanhã está nas mãos de Deus, que guia os acontecimentos além de todas as intrigas dos homens. A única coisa certa é que esta é a hora do exílio, cuja duração é incerta e terrivelmente ligada ao destino de sua família.

Continuamente prostrada aos “santíssimos pés” do Crucificado, condivide com Ele também esta nova prova, enquanto o seu coração de filha e irmã espera com temor as notícias dos seus.

A tragédia dos Varani

Entretanto, em Camerino, Júlio César Varani, velho e carregado de experiência, procura organizar uma certa defesa, tornada difícil pela costumeira falta de dinheiro.

Valentino prossegue a sua marcha de conquista e em 29 de junho assedia Camerino, recusando qualquer possibilidade de negociação. Enquanto o mau humor, a incerteza e o medo crescem na cidade ele se apossa de uma porta — sem dúvida com a ajuda de quem, de dentro, temendo o pior, escolheu o partido do mais forte — e entra como senhor.

Júlio César Varani e seus três filhos são prisioneiros de guerra. São conduzidos para fora da cidade no silêncio geral. Vencidos e perseguidos, não perdem a digna galhardia e saem daquela Camerino que dominaram até ontem com senhoril reserva, embora sofrendo profundamente pelas poucas vozes de desprezo que se elevam de uma multidão muda e consternada.

O pai é separado dos filhos e são presos em fortalezas diferentes. Na angústia das horas que passam, os pensamentos  do velho e orgulhoso chefe o levam a rever como numa defesa toda a sua vida. Nesta hora tão  trágica o cristão prevalece sobre o “senhor” e ele descobre  ter obtido uma grande força da oração daquela filha tão amada que Deus quis toda para si. O pensamento de sua Camila é assim tão estreitamente ligado àquele das realidades sobrenaturais, a ponto de formar um único todo: o conforto e a paz que ele sente no coração não tem nada de terreno. Ele sabe que Irmã Camila reza por ele e esta segurança o sustém.

Na realidade, as notícias assim dramáticas chegam bem rápido a Atri e a Irmã Pobre intensifica ainda mais a sua oração, preocupada pela vida dos seus, mas mais ainda pela salvação eterna deles.

O tempo passa lentamente para os prisioneiros, mas após dois meses o drama se precipita, porque Valentino teme que fujam da torre para unir-se aos seus adversários.

A identidade das datas leva a pensar em precisos temores de César Borja. A 9 de outubro, de fato, os “conjurados” se reuniram junto ao Trasimeno e passaram logo à ação, reconquistando Urbino.

Na mesma noite entre 8 e 9 de outubro  o homem de confiança do duque dirige-se à fortaleza na qual está recluso Júlio César Varani e o mata ao amanhecer, estrangulando-o. Transfere-se logo à outra fortaleza e mata os três filhos. A acusação que leva a esta macabra execução é aquela de haver tramado para reconquistar a senhoria: fruto das suspeitas e dos medos de Valentino.

O anúncio da tragédia não tarda a difundir-se e chega rápido também a fortaleza de Atri, penetrando profundamente no espírito de Irmã Camila, que se imerge ainda mais no abismo do coração de Cristo. Toda a dor e todo o amor que Ele provou na sua Paixão se fazem novamente vida neste imenso sofrimento da Irmã Pobre, que sedenta do “mal sofrer” não havia podido imaginar “como” seria realizado o seu ser crucificada com Jesus.

Sente a ferida sangrenta de seu lado abrir-se ainda mais por este atroz delito realizado por um homem que se apresenta como encarregado pelo vigário de Cristo. É uma hora de trevas, mas na noite mais profunda destes escuros acontecimentos eleva a oração de princesa pobre e espoliada por amor. A sua imersão no oceano sem confins do amor de Deus, a sua total oferta a Ele desta dor indizível que não compreende, mas que acolhe como gesto supremo de sua vontade de Pai, compensam sem medida a atrocidade do mal.

O peso da balança se dobra da parte do amor desta mulher imensamente maior que o ódio dos homens, porque nela se manifesta, se faz presente a infinita bondade e misericórdia de Deus. A sua intercessão junto ao trono da justiça, pelos mortos e pelo assassino, se eleva de um coração totalmente purificado, que no perdão e na penitência brilha como luz esplêndida sobre o horizonte escuro do seu tempo.

Entretanto, continuam as lutas em sua terra. Depois de diversos acontecimentos assinalados também pelo momentâneo retorno do irmão salvo do homicídio, em agosto de 1503 morre Alexandre VI. Então João Maria pode voltar e reunir em Camerino a senhoria dos Varani.

Retorna para servir

Para Irmã Camila e sua companheira vibra finalmente a hora do retorno. As duas peregrinas, que deixam atrás de si o castelo hospedeiro retornando sobre os passos feitos, são ainda mais pobres e despojadas de si mesmas do que quando partiram em direção a um amanhã incerto. À mente da Varani retorna espontaneamente a lembrança de um outro retorno à sua cidade.

Então  havia o pai a atendê-la, desejoso de reavê-la ao menos próxima, estava no fervor dos inícios de uma nova comunidade. Agora, ao invés, retorna verdadeiramente órfã sobre a terra  e mais do que nunca filha do Pai celeste. Vê a sua cidade com o desapego de quem passou através do fogo e olha a realidade  terrena  como algo que não lhe pertence mais. A Irmã Pobre está de tal modo nua diante de seu Deus, a ponto de não exigir para si e não pedir-lhe mais nada, paga somente que Ele seja. E Ele pode servir-se dela como doce instrumento.

As poucas datas significativas  que de agora em diante  caracterizam a sua vida a põem mesmo neste gesto de serviço. Em 1505, por mandato do Papa se dirige a Fermo, quem sabe com que qual  onda de recordações ainda vias na alma, para fundar um mosteiro de Clarissas e permanece pouco mais de um ano.

Os poucos documentos destes anos nos dizem que é repetidamente eleita abadessa: então nela tudo é dom e disponibilidade, assim as suas irmãs podem gozar das atenções maternas desta mulher forte e tanto mais amante quanto mais despojada de si.

É-lhe pedido ainda um último e doloroso desapego: em 1511 morre Giovana Malatesta, a mãe adotiva, que foi irmã e amiga, e que marcou profundamente a humanidade de Camila antes e de Irmã Batista depois. Enfim lhe resta somente o irmão João Maria, sempre mais potente e seguro em sua senhoria, que porém conhece bem pouco, porque nasceu exatamente no mesmo ano de seu ingresso no mosteiro.

De cerca de 1512 nos resta um escrito breve  no qual a irmã narra duas visões de Santa Catarina de Bolonha, a mestra espiritual das Irmãs Pobres do seu tempo, que nos diz como o passar dos anos e as alternadas vicissitudes não apagaram, mas sempre mais alimentaram a união mística de Irmã Camila com seu Senhor. Agora sua pena cala porque  considera natural o que acontece no decorrer dos dias, numa intimidade assim tão profunda que não se pode nem mesmo tentar narrar.

O tratado da pureza de coração

Mais ou menos em 1512, o longo silêncio, que é então a nota dominante de Irmã Camila, é interrompido ainda uma vez  para responder com simplicidade e humildade a um “padre” que é mais identificado com o mesmo Giovani de Fano ao qual já havia endereçado as “Instruções ao discípulo”, movido pelo desejo de conhecer o seu caminho espiritual. Alguns estudiosos colocam em dúvida que este “tratado da pureza de coração” tenha saído de sua pena porque nos encontramos diante de um estilo pacato e sistemático, às vezes bem diferente daquele dos escritos da juventude.

Porém, a nós parece que esta obra, da última época de sua vida, tem todos os traços característicos que lhe são próprios. Aos nossos olhos e à nossa atenção se apresenta uma mulher que superou a soleira dos sessenta anos e contempla o caminho percorrido  com o desapego e a serenidade de quem não se pertence mais.

 Ainda mais, certas expressões a propósito “da  crucificação que vem dos homens” nos conduzem sem sombra de dúvida aos acontecimentos  concretos de sua vida. O tom pacato nos diz que sente-se já próxima à outra margem, onde as coisas são vistas com os olhos de Deus, sem a veemência da paixão, que torna vivas e palpitantes na luta por um amor mais “puro”, sempre menos ameaçado pela procura de si.

O contínuo derramar-se em amorosas elevações que retomam seguidamente a linguagem do Cântico dos Cânticos, nos repete ainda uma vez como esta dura purificação, que exige luta e crucificação, é desde o início um caminho de amor.

A esquematização que considera as três clássicas etapas da ascese espiritual: purificação, iluminação e chama do amor, demonstram um bom conhecimento dos mestres de espiritualidade. É também sinal de continuidade com a mais genuína tradição franciscana que remonta ao próprio Francisco.

Na estupenda oração que conclui a carta ao Capítulo Geral, ele considera de fato estes  três aspectos da oração, que vê como movimentos complementares e não sucessivos da ascese a Deus. A “pureza do coração e da mente” é um dos elementos mais característicos da espiritualidade do Santo de Assis, que nesta beatitude evangélica vê a disponibilidade total a Deus, de quem não se pertence mais, e vive em contínua ação de graças.

É significativo notar que Irmã Camila se detém longamente sobre o caminho de purificação, no qual nos encontramos empenhados por toda a vida, enquanto dedica poucas páginas à iluminação, que considera em grande parte obra de Deus e por isso preparada pela contínua espoliação de si por amor. Revela-se também neste aspecto, filha do Pobrezinho porque considera suprema iluminação a descoberta do amor “pessoal” que Deus tem por sua criatura, acompanhada pelo estupor sem fim por tanta benevolência divina. Vê, porém, completada pela lúcida “conhecimento do próprio nada e vileza”. E cita Francisco naquele seu “quem és tu e quem sou eu?”, que sintetiza a sua postura fundamental de “vilíssimo verme” frente ao “Altíssimo, Onipotente, Bom Senhor”.

Também sobre a terceira etapa, firma-se brevemente e como o pai Francisco, não  a chama contemplação, mas “chama do amor seráfico. Este é fogo com o qual se cozinha aquela voluntária doação, aquele sacrifício do cerne do coração, aquela vítima pacífica e racional do homem interior que tanto agrada a Deus”.

Fala quase exclusivamente desta parte humana, que, porém, é dom de Deus e obra do Espírito Santo, porque “eis então que, com a ajuda de Deus, cumpre a oblação voluntária, o Senhor Deus dará tudo aquilo que deseja a quem celebrar devidamente esta oblação...” Aquilo que acontece depois pertence à esfera do gratuito, do indizível e Irmã Camila, que permanece uma mulher prática e concreta, não considera oportuno falar.

Basta o quanto disse para estimular quem procurar o Senhor, o ser verdadeiramente pobre de tudo, para que Ele possa cumprir nele as suas maravilhas e fazê-lo “saborear a secreta doçura que reserva somente aos seus amigos”, para usar as palavras de Clara.

Outros eventos dolorosos

Nestes últimos anos, as coisas do mundo tocaram-na sempre menos, assim assistiu de longe, considerando a luz desta “pureza do coração” os acontecimentos que levaram o irmão a uma glória terrena sempre maior.

É ensinada também pelas alternadas vicissitudes de sua família e reza para que não brotem ainda momentos dolorosos que se prevêem, porque João Maria, tornado duque, prefeito de Roma, almirante da Santa Igreja Romana, considera-se o único senhor de Camerino.

Ao contrário, há o pequeno Sigismundo, que fugiu com a mãe nos momentos dramáticos e é agora um jovem que reclama seus direitos de participação no senhorio. Não há possibilidade de acordo, e então, o rapaz de dezoito anos, filho de Venâncio, primogênito de Júlio César Varani, com o apoio militar de um tio materno, marcha contra Camerino. João Maria deixa a cidade, para retomá-la pouco depois, facilitado pela ajuda dos cidadãos, contentes com seu bom governo. Enquanto Sigismundo está em viagem à procura de socorro, é assassinado barbaramente. É o último elo de uma corrente de sangue, a última ferida no coração de Irmã Camila, que não fez ouvir a sua voz.

A sua oração, porém, não podia ser senão um pedido de paz na justiça e, ainda  uma vez saboreou a amargura de ver sempre prevalecer o orgulho e a sede de poder. Este fatos são próximos ao período em que a irmã divulga o seu “Tratado da Pureza de Coração”. Não sabemos se o precedem ou se vem logo depois. Em todo caso, o tom do livro nos diz qualquer coisa do desapego profundo no qual a indômita filha de Júlio César vive então seus dias. Naturalmente o seu coração ardente não perdeu a capacidade de sofrer, mas a interiorizou ao máximo, vivendo-a no silêncio e na paz.

No silêncio de Deus

Após estes eventos, as crônicas não falam mais dela. A única notícia que encontramos, é aquela de sua morte, ocorrida no dia 30 de maio de 1524. Não conhecemos o caminho destes últimos anos, nem a doença que a conduziu ao encontro com Cristo.

As suas companheiras não se preocuparam em deixar uma lembrança das últimas horas. Tudo é envolvido no silêncio. Volta à mente o ardente desejo de morrer para estar com Cristo, que caracterizou a hora de intimidade mais profunda com Ele, como narrou na autobiografia.

Esta inflamada aspiração, vivida com tanta intensidade nos anos da juventude, não pôde ser dissolvida na maturidade e na terceira idade. O seu desapego progressivo de todas as coisas do mundo, vivido com lúcida consciência do próprio limite e do imenso amor de Deus, levou-a sem dúvida a estender-se sempre mais em direção à meta de seus desejos.

Um respiradouro de luz nos vem ainda de sua última obra, que recolhe um suspiro da alma sedenta: “Ó Esposo, do qual eu sou indigna, Pai não merecido desta vil alma, que poderá dar-me poder e força de morrer por ti?”.

Talvez  o silêncio total dos últimos três anos esteja ligado ao seu fazer-se sempre mais parca de palavras; ao simples e sereno andar em direção a Deus, desta mulher que em sua vida verdadeiramente sofreu todas as provas e purificações possíveis e inimagináveis, a ponto de considerar evento ordinário o encontro com Aquele que é o centro, o único grande amor de sua vida. “Ó meu sumo e amável bem, ó vida perpétua, ó paz que  ultrapassa todo entendimento, ó inexplicável doçura, ó caridade indizível...”.

“Quero-te nua e só sobre o leito da cruz” havia lhe dito o seu Senhor no início do caminho e agora que esta “nudez” se cumpriu, Ele não quis testemunhas à consumação do seu programa que se cumpriu pontualmente, assimilando ainda mais uma vez uma simples criatura ao mistério do Crucificado de um modo que supera todo entendimento humano.

Não podemos deixar de recordar uma singular coincidência que entra nos planos de Deus, Senhor da história. Enquanto no escondimento do seu mosteiro, desconhecida aos olhos do mundo, não obstante o solene funeral, com o Duque vestido de luto e as honras dos cidadãos, Irmã Camila Batista Varani entoa ao Cordeiro o hino de sua fidelidade e de seu amor, numa cidade da Alemanha o ex-frade agostiniano Martinho Lutero prossegue pelo caminho que o está conduzindo para longe da Igreja.

Não podemos saber o quanto a humilde filha de Santa Clara  tenha colaborado na edificação do corpo místico de Cristo. É uma realidade muito profunda que permanece escondida no mistério de Deus. Enquanto podemos ver como o gesto de um ex-monge, sem dúvida muito além de suas intenções, lacerou a veste da esposa de Cristo.
Os males da Igreja daquele tempo são uma realidade irrefutável, mas a história, que permanece mestra de  vida, ensina que a reforma da vida cristã — porque a Igreja é uma realidade viva, não uma instituição — sempre foi obra da santidade, do amor por esta esposa santa, mas pecadora, porque formada por pecadores.

O nosso pai São Francisco é o exemplo mais palpitante da renovação da Igreja, operada pela humilde fidelidade de um pequeno homem enamorado de Deus. Depois dele, muitos filhos seus como Bernardino de Sena, Pedro de Alcântara e tantas outras humildes e escondidas Irmãs Pobres de Santa Clara, como esta princesa camerinense, manifestaram ao mundo que a força da Igreja esta na contínua assistência do Espírito, capaz de suscitar em cada época maravilhosos e simples homens e mulheres de Deus, testemunhas do seu amor e de sua encarnação.

Hoje, de Irmã Camila Batista Varani, restam os despojos mortais, guardados numa urna no “seu” mosteiro de Camerino para a veneração das Irmãs Pobres e fiéis camerinenses. É, porém, ainda mais viva e presente nos escritos que fazem dela uma mestra de vida espiritual, embora pouco conhecida, mas capaz de formar, também em nosso tempo, fileiras de “estudiosas” na amorosa conformidade ao Crucificado, aprendida na escola da íntima assimilação das “       dores mentais “ do Senhor e sobretudo na penetração das dores e no amor do seu coração.

Nenhum comentário:

Postar um comentário