29 de abr. de 2010

As Dores Mentais de Jesus em sua Paixão

Aos cuidados das Clarissas de Camerino
no V centenário de fundação do mosteiro.
Janeiro de 1984


Tradução e digitação:
Irmã Sandra Maria, osc
Irmã Maria Renata, osc
Mosteiro Nazaré - Lages - SC

Do original italiano:
Camilla Battista Varani Da Varano
I DOLORI MENTALI DI GESÙ NELLA SUA PASSIONE
I RICORDI DI GESÙ
Editrice Àncora Milano 1985


RESUMO BIOGRÁFICO

A REDESCOBERTA DE UMA MÍSTICA

Para celebrar o V centenário de fundação de seu mosteiro, as Clarissas de Camerino imprimiram a autobiografia de Santa Camila Batista, fundadora do mosteiro, depois de traduzi-la para o vernáculo.

Parece uma redescoberta desta mulher, em cujos acontecimentos humanos se espe-lham situações comuns entre as jovens e cuja fidelidade aos empenhos é modelo para todos. Da autobiografia retiramos este perfil.

UMA PRINCESA CAPRICHOSA

A filha de um príncipe do renascimento italiano, o duque de Camerino, Júlio César de Varano, não poderia ter outro nome que não fosse clássico: Camila, como a heroína romana.

Nasceu no dia 9 de abril de 1458. Da natureza herdou a inteligência brilhante, do pai provavelmente herdou uma vontade decidida, a corte deu-lhe uma educação conforme a sua condição e o seu tempo.

O resultado, descreve-o ela mesma: “Exceto o breve espaço que dava à oração, todo o resto do tempo passava-o a tocar, cantar, dançar, passear, em vaidades e outras coisas juvenis e mundanas” .

Não nos deixemos enganar pelo “breve espaço” concedido à oração numa corte renascentista era programada também a oração, como ato de família, especialmente por parte das mulheres e das servas.

Realisticamente, a vida de uma corte era festiva ou guerreira, salvo o caráter místico e os programas humanísticos ou artísticos dos senhores. Por isso, as atitudes de Camila eram voltadas às coisas do mundo, como confessa: “Causavam-me tanto tédio as coisas religiosas, os freis e as irmãs, que me desgostava até mesmo em ver; ridicularizava quem lia livros espirituais e colocava todo meu empenho em honrar-me e ler coisas mundanas”.

Mas como todo jovem é atraído por uma cerimônia religiosa com seus aspectos exte-riores, assim Camila, com seus 8 ou 10 anos, participou, numa Sexta-feira Santa, da pregação da Paixão, permanecendo presa, “como pessoa que ouve narrar coisas que nunca ouviu de ninguém”. A exortação final do pregador, que sintetizava em si mesmo o santo e o orador, o Bem-aventurado Domênico de Leonessa, fica impressa na alma da menina: recordar-se da Paixão do Senhor ao menos na sexta-feira e “derramar por ela uma lagrimazinha apenas”.

Poucos anos depois, aquela exortação impulsiona a adolescente Camila a “fazer voto a Deus de derramar cada sexta-feira ao menos uma lágrima por amor à Paixão de Cris-to”. Para um caráter manso e religioso podia ser simples, mas para uma jovem que “sen-tia nojo em ler coisas devotas e nem podia agüentar escutá-las”, “era muito difícil espre-mer aquela bendita lágrima”, tanto que não esperava pela segunda, porque “era rápida em levantar-se e fugir”. Somente a força de vontade e um certo orgulho a mantinham firme no propósito.

Casualmente — mas o que acontece por acaso? — encontrou um livro com uma espécie de meditação sobre a Paixão, subdividida em quinze partes que terminavam com a recitação de uma Ave Maria. Procurou utilizá-lo, lendo-o “todo de joelhos em frente ao Crucifixo, muito devotadamente, cada sexta-feira”. Assim o voto começou a lhe dar satisfação, o número de lágrimas aumentava e seguidamente caíam diante de qualquer um, “fazendo com que as pessoas da casa suspeitassem que chorasse ora por uma loucura mundana, ora por outra”.

À meditação, acrescenta o jejum a pão e água, estendendo-o às festas do Senhor e de Maria. Somente as intenções permaneciam a nível humano: tudo isto fazia não somente para ter prêmio no Céu, mas muito mais na terra.

Não nos maravilhemos disto: quem nunca procurou, com orações e mortificações, curvar o Onipotente aos próprios desejos? E uma princesinha, aparentada — mesmo que indiretamente — com os Estensi de Ferrara, os Malatesta de Rímini, os Sforza de Milão, tinha projetos concretos sobre si mesma.


QUANDO DEUS QUER TUDO

Poderia haver também o “medo do inferno” na fidelidade ao voto, mas a participação nas penas de Jesus se tornava cada vez mais intensa e profunda; a sexta-feira era dia de empenho para a meditação, de jejum e agora também de flagelos físicos, mas sobretudo “para evitar alguns de meus defeitos”, escreve Camila.

Com tais pressupostos, Deus não pôde senão encontrar espaço em um coração.

A jovem começou a perceber certas vozes que a convidavam a inverter a própria vida e a deixar o mundo. A reação foi negativa: “Todo o meu ser experimentava contrariedade e repugnância pela vida religiosa e as alegrias e os prazeres do mundo me atraíam fortemente”. Camila ainda não estava pronta.

Deus se aproveita de circunstâncias comuns para fazer chegar as mensagens à alma; as intervenções extraordinárias são a última instância.

Para Camila, foi uma outra pregação. Era o dia da Anunciação e desta vez o pregador sustentava que uma faísca do amor provado pela Virgem naquela circunstância era superior à soma dos amores de todo o mundo. O ânimo de Camila não era feito para coisas medíocres. Assim, eis um outro voto: “Conservar imaculados todos os sentimentos”, mas, como uma pequena política, coloca uma condição: experimentar “uma faísca daquele amor” experimentado por Maria no anúncio do anjo Gabriel.

Parecia um jogo, mas era um ir sempre mais de encontro ao infinito amor daquele Cristo que havia dado a si mesmo também por Camila e que parecia condescendente ao jogo.

As vozes se faziam mais claras e a luta repercutia também exteriormente; ir à oração “parecia ir à guerra” e Camila “algumas vezes tapava as orelhas com as mãos para não ouvir”. Numa memorável confissão, ouve explicitamente perguntar se queria fazer-se irmã: responde com um não decidido!

Chega finalmente o dia fatídico. Uma sexta-feira, o dia dos grandes empenhos, a ba-talha se fez mais áspera. No fim, “espontaneamente” a sua vontade, que sempre perma-nece forte e vigorosa “decide “servir a Deus com imenso afeto e coragem”. Imediatamen-te sucederam-se duas coisas: o Senhor lhe inspirou onde realizar a decisão e lhe concedeu “um sumo repouso... uma grande paz”.

Agora não havia mais resistências. Deus podia efundir-se num “dilúvio” de miseri-córdia, como se quase não “pudesse saciar-se de ter apertada em seus santíssimos braços a sua alma pecadora”, constrangida a pedir-lhe que afrouxasse um pouco aquele abraço amoroso.

Iniciavam assim na alma da jovem princesa aquelas iluminações e experiências místicas que comunicará aos outros.

No entanto, chegou a provação, sem a qual nada se fortifica. Por dois anos e meio o pai se opõe aos desejos da filha e neste tempo uma doença deixa a jovem acamada por sete meses. Agora, porém, Camila era muito ligada a Cristo Jesus, ao qual já chegou a pedir para sofrer sem consolação. Estava aprendendo que “quem quer servir somente a Deus deve ser despojado e livre de tudo e de todos”.

SERVA DE DEUS E MÃE DAS ALMAS

Mas também os sonhos se realizam. No dia 14 de novembro de 1481, a filha do duque de Camerino voltava as costas ao mundo e atravessava a soleira da casa de Deus, em Urbino; despojava-se dos vestidos suntuosos para vestir o grosseiro hábito de Santa Clara, deixando o poético nome de Camila para assumir o de Irmã Batista, que exprimia bem o novo ideal: “Ele deve crescer, eu devo diminuir” (Jo 3,30).

Permaneceu somente dois anos em Urbino, naquela corte de Senhoras Pobres, onde encontrou “os dulcíssimos cantos das orações arrebatadas, a beleza dos bons exemplos, os secretos tesouros das graças divinas e dos dons do céu”.

Durante o noviciado colocou por escrito as exortações recebidas de Cristo depois da decisão de consagrar-se a Ele, intitulando-as As recordações de Jesus. Logo em seguida a obediência chamou-a para fundar uma nova comunidade.

Seu pai, não podendo ter distante uma tal filha, adaptou o Mosteiro dos Olivetanos em Camerino, onde Camila Batista entrou com oito co-irmãs no dia 4 de janeiro de 1484, com vinte e cinco anos de idade e poucos meses de profissão religiosa. Jesus, que a queria sua esposa, agora a conduzia a ser mãe e mestra. Tem início, assim, a atividade de Camila Batista como escritora, em favor das filhas e de outras almas fora do claustro.

É de 1488 a obra mais conhecida: As dores mentais de Jesus na sua Paixão, da qual “lhe foram ditadas duas páginas” pelo próprio Jesus.

A fonte de seus primeiros passos na oração e na vida contemplativa era colocada a serviço dos outros. Camila, que comparará a algumas gotas de bálsamo que escorrem do vaso, a meditação das dores físicas de Jesus, em relação àquela das dores mentais do coração do Redentor, faz extravasar externamente aqueles sentimentos tristes e consola-dores dos quais estava cheio o seu coração.

Outras experiências místicas e exortações serão escritas sucessivamente: as Instru-ções ao Discípulo, o Tratado da pureza do Coração, a carta A uma Irmã Vigária, e outros.

Camila Batista não é ciumenta nem avara: sabe que tudo recebeu da misericórdia de Deus, conhece que Ele a chamou a servir aos outros, por isso obedece às inspirações interiores e às ordens de seus superiores.

A sua vida é de exortações: para as co-irmãs, que com ela conviviam e depois, para todos os que tiveram a fortuna de ler a Autobiografia, escrita em 1491 e endereçada àquele pregador que havia causado “aquela bendita lágrima” à pequena princesa que Clara de Assis provavelmente chamaria de “rainha”, como fez com Inês da Boêmia. Pois aquela “gloriosa mãe e guia” foi enviada por Deus para visitar Irmã Batista, como que para encorajá-la nos empenhos materiais e sustentá-la nas dificuldades espirituais.

Dois momentos particulares no-la apresentam ainda mestra e modelo: após tantas consolações intelectuais e sensíveis, Irmã Batista passa por um longo período de silêncio espiritual; parecia-lhe tatear na escuridão após tanta luz, como se houvesse obtido aquilo que havia pedido: “entrar no mar amaríssimo das penas mentais do coração de Jesus e ali mergulhar”. Foram anos de crescimento, pois a noite dos sentidos faz aumentar nos místicos a sede de Deus.

As páginas da Autobiografia gritam para o Esposo, que parece havê-la abandonado, e pede ajuda a confessores. Tal atitude de busca, de invocação, de confiante esperança torna-se ensinamento e encorajamento para os leitores.

Em 1501, precisou afastar-se do Mosteiro de Camerino com uma irmã, sua parenta, porque o duque Valentino assediava a cidade. Rejeitada pelos senhores de Fermo, pois a amizade com os Varani constituía um perigo, refugiou-se em Atri, onde foi atingida por dolorosas notícias: a trágica morte do pai e dos irmãos, estrangulados por ordem de Cé-sar Bórgia nas fortalezas de Pérgola e Católica. Mais tarde, beberia até o fim o cálice do sofrimento, assistindo impotente as lutas fratricidas pelo predomínio de poder sobre a cidade.
Único refúgio e conforto seguro nestes momentos foi, para ela, o coração de Jesus, no qual tantos anos antes lera a declaração de amor: “Eu te amo, Camila”.

O Papa Júlio II enviou-a para Fermo em 1505, a fim de fundar um outro Mosteiro de Clarissas.

A morte de Camila — 30 de maio de 1524 — é envolvida no silêncio e na solidão. Mas as “potentíssimas mãos” de Jesus, que noutras vezes eram-lhe apresentadas “firme-mente amarradas... (pelas) orações que irmãs e freis elevavam a Deus por ela a fim de que não morresse” acolheram-na finalmente num abraço de “ardor fervente e inflama-do”, pois com Cristo “a morte não é mais morte, mas um encaminhar-se às núpcias, com cantos e danças”.


Frei Silvano Bracci, ofm

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